29 de dez. de 2012

Positivo

Bateu a porta.
Espalhados pelo chão, rastros e restos. Papéis e letras despedaçados, cacos dos vasos jamais floridos, respingos alcoólicos, marcas de passos leves e brevidades; fragmentos de amanhãs em estilhaços de ilusão.
Sobre a mesa ainda posta, duas taças com vinho. A da esquerda, intacta.

26 de dez. de 2012

Outros Sublinhamentos

História Clínica
Por Eduardo Galeano

Informou que sofria de taquiacardia toda vez que o via, mesmo que fosse de longe.
Declarou que suas glândulas salivares secavam quando ele a olhava, mesmo que fosse por acaso.
Admitiu uma hipersecreção das glândulas sudoríparas toda vez que ele falava com ela, mesmo que fosse apenas por cortesia.
Reconheceu que padecia de graves desequilíbrios de pressão sanguínea quando ele a roçava, mesmo que fosse por engano.
Confessou que por ele padecia de tonturas, que sua visão se enevoava, que seus joelhos afrouxavam. Que nos dias não conseguia parar de dizer bobagens e que nas noites não conseguia dormir.
- Foi há muito tempo, Doutor - disse. - Eu nunca mais senti nada disso.
O médico ergueu as sobrancelhas.
- Nunca mais sentiu nada disso?
E diagnosticou:
- Seu caso é grave.

21 de dez. de 2012

Alguns conselhos


esteja disponível para os que ama e aprenda com aqueles que magoam acorde cedo acorde tarde acorde na hora em que o corpo pedir acorde na hora que quiser sorria quando sentir vontade e não contenha as lágrimas segure o choro para parecer forte seja fraco seja resiliente seja altivo ajude aqueles que estão longe e também os que são próximos mantenha-se distante abrace olhe nos olhos e quando for mentir desvie o olhar quando mentirem desanuvie ignore os olhos acaricie abrace passe os dias sozinho debruçado sobre os livros anestesiado pela televisão imbecilizado pelo futebol saia de baixo da cama assuste maravilhe-se ria em boa companhia sorria só use roupas novas apegue-se às roupas velhas molde-se ao seu corpo construa um corpo seu se desfaça do que já não serve doe-se seja de verdade minta quando precisar de proteção não espere bênçãos vindas do céu não espere nada do outro mexa-se faça sexo sem compromisso faça sexo com amor faça sexo faça por merecer enxágue as mágoas passageiras mantenha as antigas tristezas no congelador armazene sentimentos saudáveis consuma o ódio antes que ele o consuma use roupas de cama limpas rejeite a lavagem ame os porcos não coma os animais raciocine leia bons livros e livros ruins assista aos filmes sozinho abrace quem ama na fila do cinema até que um dos dois se sinta desconfortável beije erre mais erre diferente felicite-se pelos acertos presenteie aqueles de quem lembra presenteie-se não gaste seu dinheiro gaste tudo com aquilo que te faz bem não se desgaste em vão abrace causas falidas batalhe por ideais não se deixe corromper vá ao teatro sinta-se livre para dizer que não gosta de teatro assista novas peças reveja peças nas quais não se viu peça perdão perdoe-se afaste-se de pessoas nocivas não sucumba às idéias corrosivas ande de bicicleta vá à academia orgulhe-se do sedentarismo respeite os que são dignos de respeito e os indignos também respeite as leis subverta-as respeite-se grite com aqueles de quem sente raiva exprima-se odeie sussurante e ame baixinho declare-se admire o pôr-do-sol durma durante o pôr-do-sol aceite-se dance se tiver vontade sinta-se feliz por não dançar deixe-se escravizar pelo celular e pela internet desprenda-se das falsas conexões alimente ilusões conviva com amigos imaginários sofra cante na chuva siga as pistas e os conselhos siga a estrada de tijolos amarelos ignore conselhos e listas faça listas amasse papéis delete arquivos salve-se salve-os aconteça o que acontecer não coma animais.

18 de dez. de 2012

Sublinhamento

Somente o tempo e a solidão possibilitam a absorção e a digestão do que nos chega pelos sentidos. Quanto mais profundo é um poço, maior o tempo necessário para que alguma coisa lhe chegue ao fundo. Então a solidão é uma necessidade para quem quer conhecimento. Mas a vida em sociedade exige poços rasos.

Excerto do livro Nietzsche e a grande política da linguagem; Viviane Mosé

15 de dez. de 2012

Tuitéria


Afetuar é como abraçar inteiro até desfazer o nó.

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Afetuar a acontessência das pessoas e das coisas todas.

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T R A N S F O R (A) M A R

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Reamar é ser surpreendida pela felicidade alegre de um amor antigo.

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Só ganho corpo quando encontro um deslugar.

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Um corpo em movimento é um corpo pulsante: dançar é [en]tornar-se coração.

12 de dez. de 2012

Atualizando a Biblioteca: Promessas


Sou uma daquelas muitas pessoas que costumam cumprir o prometido - desde que prometa para os outros. Eu te darei o céu, meu bem... Mas comigo não vou além. Me faço pelo menos cinco promessas diárias e fico satisfeitíssima quando consigo cumprir uma delas.
É raro, quase impossível, cumprir as metas estabelecidas. Por algum motivo incognoscível (pausa para o Aurélio!), preciso caminhar por muitos mundos antes de ceder aos meus desejos e sucumbir às prioridades quase desimportantes; para chegar até mim.
Prometi escrever, neste blogue, sobre todos os livros lidos durante 2012 e, embora registre em caderninhos, que apelidei de livrários, todas as minhas impressões e opiniões sobre leituras, ainda não cumpri um terço da promessa.
Eu nunca havia estabelecido uma meta de leitura, mas, em janeiro passado, o fiz pela primeira vez. Prometi ler a Poesia Completa do Manoel de Barros durante os doze meses do ano e agora celebro o cumprimento de uma promessa e a despedida de um livro repleto de paisagens transformáveis e palavras com sabor de descoberta maravilhante.
Manoel de Barros me causou estranhamento durante a primeira leitura - dO Livro das Ignoranças -, há alguns anos. Depois da experiência frustrada, passei algum tempo flertando, durante mergulhos na internet e idas à livraria, com a poesia do autor. Como Clarice, Virgínia e alguns outros, o poeta foi um caso de amor às segundas vistas, um prêmio pela minha insistência.
Foi bom ler Manoel de Barros durante o ano em que li muitos outros poetas. Eu poderia dizer que escrevo melhor quando leio mais poesia, ou que vejo e sinto melhor quando imersa nas palavras dos fazedores de beleza poética, mas minha relação com a poesia não pode ser descrita, ela é sentível e, apesar de farfalhante, quase enclausurada, só acontece dentro.
A poesia engrandece o olhar. Me torno imensadora de universos distintos quando sinto que as palavras de um poeta me habitam e ganham novas formas e significados a partir do meu ângulo de visão - que sei transformável, sempre efêmero.
Há períodos em que preciso de doses cavalares de poesia e outros em que a prefiro em doses homeopáticas. Os encontros com Manoel de Barros respeitaram meu ritmo e compreenderam minhas disposições e disponibilidades. Poesia Completa foi uma ótima companhia e repousará na estante até chamar pelos meus olhos mais uma vez. Sei que vai acontecer sempre que a poesia de que ele é feito souber que precisa estar mais presente em parte de tudo aquilo que me torna eu.

Poesia Completa - Manoel de Barros - 496 páginas - Leya

6 de dez. de 2012

Borboletantes

Você fica por aí, feito borboleta daltônica pousando nas flores que não poliniza; enquanto eu me sinto eternamente crisálida, me debatendo no casulo que fiz bonito, mas que, além de aprisionar, descobri repleto de infiltrações. Qual é o problema com a plenitude? Precisa ser sempre difícil, mesmo quando desejamos simplificar?

3 de dez. de 2012

03-12

... ainda que você seja essa estrada pedregosa e cheia de buracos profundos repletos de obscuridades que às vezes se sobrepõem ao céu que poderia ser sempre azul.