28 de dez. de 2013

Narração Itinerante, um convite à leitura


A Biblioteca Municipal de Itapetininga oferece aos alunos da Rede Pública de Ensino o projeto "Narração Itinerante, um convite à leitura", que as escolas têm recebido como um abraço, e que pretende, a partir da contação de histórias e da mediação de leitura, fomentar o interesse pela literatura e pelos livros, aumentando o número de visitantes leitores e a procura pelos volumes que habitam a Biblioteca Municipal.
Os contadores de histórias são abridores de portas e janelas, desvendadores de mundos e apontadores de possibilidades infinitas. Aquele que conta histórias nos apresenta nossos próprios abismos e nos conduz em novas viagens a todos os céus. Somos protegidos pelos contos que ouvimos. Há um novo sol a cada contação das histórias (ou estórias, daquelas que, embora continuem vivas, são vistas com desconfiança pela gramática contemporânea), depois das quais ganhamos um mundo onde nada permanece inalterado. As palavras transformam árvores em poesia e a aridez do asfalto na paisagem de parte do trajeto daqueles que já não caminham sós. As pessoas reunidas em torno de uma história são capazes de observar a si mesmas nas palavras, sons e gestos do outro, de todos os outros. Como aqueles que se encontram para ouvir a sabedoria dos griots ou de outros contadores de suas tribos, os que ouvem as vozes dos livros sabem que, como afirmam profissionais da saúde da alma, as histórias que nos contam podem ser consideradas um bálsamo medicinal. 
É consenso que precisamos dessacralizar o objeto livro para torná-lo ainda mais atraente e para valorizar o hábito da leitura. Através da narração itinerante, que leva as histórias aos alunos, a Biblioteca Municipal oferece histórias como pequenos, mas grandiosos, gestos de afeto; para que o universo criado pelas palavras seja recebido com uma generosa porção de curiosidade, e para que as histórias, e também os livros, se multipliquem entre os alunos da Rede Pública de Ensino e façam parte do cotidiano de todos nós.



Publicado na edição Nº7 do Jornal Bem Estar - Itapetininga

1 de dez. de 2013

Vitória Valentina


"Crime e tragédia na favela. Um casal rouba e mata outro casal de vizinhos, mas na fuga também morre em um acidente de trânsito. Nando e Carla Vitória Valentina, filhos dos dois casais, crescem juntos e órfãos. A amizade e a cumplicidade construídas e impostas pelas circunstâncias vividas por eles na favela são seus laços mais fortes, que vão seguir por toda a vida. Esse é o enredo inicial desta novela gráfica, que trata de excluídos sociais e econômicos.
Nando trabalha como motoboy e vende, para um portal de notícias da internet, fotos e informações de coisas que ele vai vendo por seu caminho enquanto faz entregas. Carla se forma professora, mas faz bicos como babá. Até que, um dia, ele vê o que não devia ver. Uma entrega de dinheiro, passando da mão de um empresário supostamente respeitável para a de um traficante da favela. Aí vem a aventura. Um plano armado pelo dono do portal de notícias para dar um flagrante no empresário e no traficante. Nando ganharia um dinheiro e dividiria com Carla, mas o plano dá errado e os protagonistas seguem em novas peripécias para se safar."
  
A quarta capa de Vitória Valentina diz também que o texto é contra o machismo, contra o poder econômico e contra o consumismo, e que a autora, Elvira Vigna, gosta dos desenhos "sujos", em preto e branco, que criou para ilustrar a história.

Não há excessos ou poesia desnecessária no texto deliciosamente seco e direto que desconcerta o leitor desde a primeira página. Os personagens poderiam ser qualquer um dos nossos vizinhos e as histórias vividas por eles, como a vida de todos os seres que habitam o hospício Terra, às vezes beiram o absurdamente irreal.

Carla Vitória Valentina é encantadora porque é diferente das mulheres habitualmente retratadas pela literatura. É admirável porque vive, decide, seduz e - pasmem! - tem sua história contada por uma narradora que atribui a ela o desejo de praticar sexo com um homem, quando descreve exemplos de paixões inventadas - aquelas que acometem muitas de nós. 

Mesmo não sendo leitora habitual de HQs, gostei das ilustrações repletas de informações e movimento que dão vida às páginas. Terminei a leitura apaixonada por mais uma história criada por uma das grandes autoras brasileiras, que está entre as que mais gosto de ler.

Vitória Valentina é um convite para refletirmos sobre a naturalidade com que recebemos o que deveríamos repugnar e sobre os hábitos nocivos aos quais impensadamente nos submetemos. Nem tudo é espetáculo. A violência e as desigualdades não podem ser espetaculáveis. Sobrevivente do entorno, a personagem que intitula a HQ é o retrato de uma das mulheres que muitas outras mulheres - entre as quais me incluo - gostariam de ser.



Vitória Valentina - Elvira Vigna - 128 páginas - Editora Lamparina


24 de nov. de 2013

A nossa biblioteca


O escritor português Afonso Cruz escreveu, no divertido livro Os livros que devoraram meu pai, que "... um homem é feito de histórias, não é de DNA e músculos e ossos. De histórias.". Aqui no Brasil, há muito tempo, o muito lido e controverso Monteiro Lobato afirmou, depois de uma temporada nos Estados Unidos, que "Um país se faz com homens e livros".

Frequentadora assídua de bibliotecas públicas desde a infância, é com imensa alegria que percebo o renascimento da Biblioteca Municipal de Itapetininga, que vem à luz a partir de um novo coração, repleto de energia pulsante. Os olhos das crianças e jovens, atentos durante as contações de histórias, e o crescente movimento de empréstimo de livros e revistas atestam: há uma nova vida entre as paredes onde moram os livros que abraçam a imensa onda colorida que, transformada em balcão, atravessa o ambiente claro e quase sempre silencioso.

Na semana em que um jornal da capital paulista anunciava, em uma reportagem, o abandono de algumas bibliotecas paulistanas, nas quais quase não há movimento ou visitação do público, a Biblioteca Municipal de Itapetininga reuniu cerca de 220 pessoas durante uma tarde de contação de histórias. É a realidade da cultura da cidade que já foi conhecida como "Terra das Escolas" transformada para muito melhor.

As mães e pais que levam seus filhos à Biblioteca certamente não esquecerão dos momentos de afeto e intimidade partilhados entre histórias e livros. O resultado das vivências que acontecem através das histórias contadas ou lidas em um livro se reflete na educação e, principalmente, nas relações interpessoais, tão pouco valorizadas nos dias que correm. Imergir nos livros, partilhar histórias e compartilhar momentos de afeto é exercitar o gesto de ver o outro - um exercício que o ser humano corre o risco de esquecer, se não praticar. Os jovens e adultos que se dispõem a desbravar o lugar tido como inacessível, ou para frequência exclusiva de intelectuais e eruditos, descobrem que a Biblioteca Municipal é de todos nós.

O espaço físico é excelente, mas limita o alcance das muitas histórias que os livros contam. Porque as histórias são infinitas e os livros existem além das paredes e prateleiras, a Biblioteca Municipal passeia pela cidade em projetos de incentivo à leitura como “Biblioteca, um espaço de leitura”; “Bordando a nossa história”; “Hora do conto”;” Tardes de história”; “Narração Itinerante, um convite à pratica de leitura” e “Cine livro”, nos quais acontecem a contação de histórias e conversas sobre livros e literatura nas escolas e também a recepção de grupos escolares no pequeno espaço em um anexo aconchegante da Biblioteca Municipal.

Não é possível prever  a dimensão das transformações que acontecerão entre os cidadãos itapetininganos a partir da nova vida gerada com o aumento de visitas à biblioteca e a facilidade de acesso aos livros, mas podemos afirmar que estamos diante do princípio de grandes mudanças que beneficiarão a todos.

Se um país se faz com homens e livros e somos feitos das nossas histórias, a Biblioteca Municipal de Itapetininga tem nos dado uma das mais valiosas possibilidades para criarmos histórias mais bonitas e construirmos novas realidades a partir do que os livros, e a nossa relação com a Biblioteca, dizem sobre a história da cidade que é feita por nós.


A Biblioteca Municipal de Itapetininga, ou Biblioteca Dr. Júlio Prestes de Albuquerque , fica à Rua Campos Sales, número  175, e tem as portas abertas de segunda a sexta das 8 às 22 horas, e aos sábados das 9 às 12 horas.
Ela tem a fachada feita de colunas de cores que, postas  aos pares, foram dispostas como livros na estante. Você já foi até lá?



Publicado na edição Nº6 do Jornal Bem Estar - Itapetininga

14 de nov. de 2013

Livros portugueses com frete grátis!



Como alguns me pediram, aqui vão sugestões para que aproveitem o dia de frete grátis no site da Wook:

Recomendo qualquer um dos três romances mais longos do Afonso Cruz. "Jesus Cristo bebia cerveja", que será lançado no Brasil no ano que vem, é tão divertido quanto triste; "Para onde vão os guarda-chuvas" também é divertido, mas me doeu um pouquinho mais, porque fala sobre crianças. Acredito que posso recomendar sem medo "A boneca de Kokoschka" porque, além de os outros dois romances serem bons, o Valter Hugo Mãe indicou "A boneca..." como um dos livros que todo mundo deveria ler - o outro indicado foi "A metamorfose", do Kafka.

"Dentro do Segredo" e "Abraço", do José Luís Peixoto, também são ótimos livros. Os livros de poemas escritos por ele e "Antídoto", de contos, que é bem baratinho, também são só amor.

Para quem gosta de poesia, tem "Todas as Palavras", do Manuel António Pina, que escreve bonito demais. Há também os livros com poemas da Wislawa Szymborska, que só foram publicados em antologia aqui no Brasil.

Do Ondjaki eu recomendaria, além de "Dentro de mim faz sul seguido de Acto Sanguíneo" e "Materiais para confecção de um espanador de tristezas", que são livros de poesia, o lindo "O Assobiador", que é um dos livros mais bonitos que ele escreveu.

Tem também os livros de poemas do Mia Couto, que não foram publicados no Brasil e são tão lindos quanto os romances e contos que ele escreve.

Como estamos na África, não posso deixar de mencionar a Ana Paula Tavares. Há um livro de poemas dela publicado por aqui, mas "A cabeça de Salomé", que é prosa e foi publicado em Portugal, também é excelente.

Recentemente descobri o Valter Hugo Mãe nos poemas, que são tão bons quanto os romances, mas são bons de um jeito diferente. O livro "Contabilidade" é uma boa escolha para quem tem curiosidade de conhecer o Hugo Mãe poeta.

Ainda entre os livros de poemas, podemos encontrar "Provavelmente Alegria" e "Os Poemas Possíveis", do Saramago, de quem a editora portuguesa publicou também "Terra do Pecado", que foi o primeiro romance que ele escreveu e que ainda não chegou ao Brasil.

Os muito ricos podem comprar  o "Atlas do Corpo e da Imaginação", pré-lançamento do sempre ótimo Gonçalo M. Tavares, ou "Animalescos", que também foi lançado recentemente, ainda não atravessou o oceano e tem um preço bem mais convidativo.

Já os milionários podem comprar a edição fac-símile de "Claraboia", do Saramago, e enviar para o meu endereço. Estou aceitando presentes de natal!


Provavelmente atualizarei o post ao longo do dia.
Não se esqueçam que em Portugal o dia termina antes de terminar aqui no Brasil e que, para o site, vale o horário português.

25 de out. de 2013

24-10-2013


na televisão a mãe reclama seis mil e quinhentos reais gastos na festa de aniversário da filha, que não aconteceu porque o tio da menina morreu baleado na edgar facó. vejo no youtube o lançamento do single do Criolo, que fala sobre a realidade porque canta o mundo que, mesmo ignorado pela maioria, é real. lembro das crianças da periferia que me recebiam nas aulas de dança e das nossas impossibilidades. penso em como era difícil dizer aos pais que os filhos deveriam tomar banho e pentear os cabelos nos dias de festa. sim, nos dias de festa, que são aqueles dias em que nos queremos melhores que o habitual. volto a prestar atenção na tv, onde agora um homem quer a segunda metade do dinheiro da venda de uma lancha que custou mais de cem mil reais. hoje acordei amarga e logo cedo compartilhei com uma amiga o meu amargor. normalmente sou esperançosa, mas a humanidade é um experimento mal executado no qual é cada vez mais difícil acreditar.

5 de out. de 2013

APONTAMENTO


Vida - o único meio
de se revestir de folhagem,
recuperar o fôlego na areia,
levantar voo batendo as asas;

ser cão
ou afagar-lhe o pêlo quente;

distinguir a dor
de tudo o que ela não é;

caber nos acontecimentos,
perder-se nas paisagens,
procurar o mais ínfimo dos enganos.

Ocasião excepcional
para, por um instante, recordar
o que se conversou
junto de um candeeiro apagado;

pelo menos uma vez,
tropeçar na pedra,
molhar-se na chuva,
perder as chaves na relva.


Wislawa Szymborska, no livro Instante, publicado pela editora Relógio D'Água

4 de out. de 2013


A vida prática sempre me pareceu o menos cómodo dos suicídios. Agir foi sempre para mim a condenação violenta do sonho injustamente condenado. Ter influência no mundo exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em gente — tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebulosa que a dos meus devaneios. A futilidade imanente de todas as formas da acção foi, desde a minha infância, uma das medidas mais queridas do meu desapego até de mim.
Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa.
Sempre meditei como era absurdo que, onde a realidade substancial é uma série de sensações, houvesse coisas tão complicadamente simples como comércios, indústrias, relações sociais e familiares, tão desoladoramente incompreensíveis perante a atitude interior da alma para com a ideia de verdade.


Fernando Pessoa no Livro do Desassossego, por Bernardo Soares

1 de out. de 2013


você pintou as paredes e chamou de adorno o vaso com flores de plástico. você instalou as cortinas e,  para poupar minhas unhas recém-pintadas, limpou todos os cômodos da casa. você organizou meu caos e arrumou meus livros na estante. você tentou me ensinar física quântica enquanto aprendia a cozinhar. você me olhava enquanto eu dormia e me acordava com um sorriso. você não combinava com os lençóis da minha cama e não estava no ventre crescente. quando você foi embora já era tarde. você foi embora tarde demais.

30 de set. de 2013

O mal de Montano



Não sei como as pessoas vivem tranquilamente depois de um livro do Vila-Matas. Não sei se as pessoas são capazes de viver tranquilamente depois de um livro do Vila-Matas.

"Talvez a literatura seja isto: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa, inventar um duplo."

O mal de Montano é narrado com por um um pai que sofre o mal de Montano e se diz preocupado com o filho, um escritor também acometido pela doença da literatura. O livro parece dar continuidade às reflexões feitas pelo autor em Bartleby e Companhia, porque nele Vila-Matas se refere novamente aos escritores que, mesmo doentes de literatura, desistiram do ofício de escrever.
Como os outros livros do autor, O mal de Montano é um labirinto repleto de referências literárias. Encontrei nele muitos dos meus autores favoritos e alguns daqueles que escreveram livros que estão na minha crescente lista de desejos; apesar da inquietude provocada pelos temas abordados, me senti confortável porque, durante a leitura, estava entre velhos conhecidos. Há também menções a alguns dos livros que amo, como O Castelo, do Kafka, e A Montanha Mágica, do Thomas Mann, que me deixaram desejosa de releituras a partir do olhar proposto pelo autor catalão.

'"Escrever", diz Lobo Antunes, "é como se drogar, começa-se por puro prazer, e acaba organizando-se a vida como os drogados, em torno do vício."'

Terminei a leitura com a sensação de que a literatura é esperança e causa perdida, e de que há muito a ser dito e escrito através de fórmulas que podem ou não se esgotar. A literatura é um mistério, um mergulho muitas vezes doloroso no incerto, mas é também uma grande fazedora de ironias. A história contada em O mal de Montano é a história dos doentes de literatura, uma história um pouco assustadora que pode libertar; sobretudo aqueles que, como eu, convivem com "O mal".


O mal de Montano - Enrique Vila-Matas - 328 páginas - Cosac Naify

29 de set. de 2013

Biblioteca: Notícias da ilha


No texto de apresentação do livro de poemas da Leda Beatriz Abreu Spinardi, ou Ledusha, Carlito Azevedo, também poeta, escreveu:

"... as notícias de Leda nos dão conta de que se pode sumir do mapa até ficar; que poesia se agarra à unha; que poesia cansa mas que no verão rondam milagres; que na tristeza arde uma avenida iluminada; que viver de malas prontas também é uma viagem..."


Notícias da ilha, que reúne 31 anos da produção poética da autora, foi meu primeiro contato com a poeta. A música da poesia e o tom coloquial me fizeram lembrar de outros poetas da geração marginal, como o Leminski, a Ana C. e o Chacal, de quem gosto muito.
Os poemas da Leda são registros de um olhar bonito e de sensações que contagiam pela palavra. Existe leveza mesmo nos poemas que registram inquietudes, porque provocam uma dor de beleza, que lancina avisando que vai passar - porque sempre passa, ao contrário da poesia, que fica e cresce depois de impressa em nós.
A edição, feita pela editora 7 letras, é bem cuidadíssima - amo livros com capa dura. Notícias da ilha é um livro para o qual pretendo voltar.



Notícias da IlhaLeda Beatriz Abreu Spinardi - 184 páginas - 7 Letras

28 de set. de 2013

Carpe Diem

Chegou apressado à rodoviária. Perdeu a passagem. Perdeu o primeiro dos dois ônibus daquele dia. Perdeu o ônibus das dez. Dia quente. Uma cerveja e um pão de queijo. Uma água de coco. Cinco horas de espera. A garota de vestido azul sentada à sua frente. O vestido azul e os olhos verdes. Os olhos verdes e cabelos negros encaracolados. Palavras tatuadas no tornozelo direito. Os sorrisos. A troca de olhares. Não queria ser devorado, por isso procurou o celular. Dez segundos. Um minuto, talvez. A garota já não estava.
Faltavam quinze minutos para a saída do segundo ônibus quando os televisores do saguão de espera mostraram o acidente. O ferro retorcido da cabine do ônibus daquela manhã. Pedras, um caminhão e um barranco. Vidros quebrados. Motorista morto. Silêncio. Nenhum passageiro havia sobrevivido. Close na sapatilha brilhante. "Carpe Diem". A barra do vestido azul.

27 de set. de 2013

Há alguns minutos, estava deitado de costas, com as pernas para cima, como se pretendessem golpear o teto, os olhos fechados, o rosto cheio de lágrimas. Foi surpreendente, porém mesmo chorando e nessa patética ou ridícula postura confirmei uma vez mais qual é o grande segredo de tudo: sentir-se o centro do mundo. É exatamente isso o que fazem todos os indivíduos.

Enrique Vila-Matas, em O mal de Montano

26 de set. de 2013

o talento de montano (...) e sua necessidade, até muito recentemente, de conviver com o perigo, foram sempre tão grandes quanto sua fragilidade repentina de ânimo, o que explica ter se convertido em ágrafo trágico, ao final da arriscada aposta de escrever sobre os autores que param de escrever.

Enrique Vila-Matas, em O mal de Montano

23 de set. de 2013

A Nossa Casa

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro — tão bom! — dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...


Florbela Espanca                                                                      In Charneca em Flor

22 de set. de 2013

Eu só queria outra pele estendida, menos saturada, não tão marcada quanto esta que, enquanto sonha, sangra. Uma nova face ao observar o espelho, novos olhos. Queria a inexplicável novidade imaculada, que sobrevive ao tempo porque ainda não foi amada, que respira liberta como quem nunca amou.

20 de set. de 2013

Sonhário

corria incansavelmente em torno da imensa ave negra que, morta, mantinha os olhar fixo nos meus olhos, como se me acompanhasse. o círculo aumentava e a ave crescia em imensas penas de pontas desencontradas. durante as últimas voltas percorri a distância de um quarteirão e, já exausta, notei que a ave negra brilhava e feria minha pele com as garras enraivecidas. vi flores boiando no rio enquanto meu corpo ascendia. alto muito alto. quem voou fui eu.


19 de set. de 2013

O Apanhador de Desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios. 
Não gosto das palavras 
fatigadas de informar. 
Dou mais respeito 
às que vivem de barriga no chão 
tipo água pedra sapo. 
Entendo bem o sotaque das águas. 
Dou respeito às coisas desimportantes 
e aos seres desimportantes. 
Prezo insetos mais que aviões. 
Prezo a velocidade 
das tartarugas mais que as dos mísseis. 
Tenho em mim esse atraso de nascença. 
Eu fui aparelhado 
para gostar de passarinhos. 
Tenho abundância de ser feliz por isso. 
Meu quintal é maior do que o mundo. 
Sou um apanhador de desperdícios: 
Amo os restos 
como as boas moscas. 
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. 
Porque eu não sou da informática: 
eu sou da invencionática. 
Só uso a palavra para compor os meus silêncios.


Do Manoel de Barros, na página 15 do bonito livro Memórias Inventadas Para Crianças, publicado pela Editora Planeta Jovem

18 de set. de 2013

- Faz anos que escrevo, à mão, no meu caderno, em casa, um conto/novela que ninguém, absolutamente ninguém, leu ou sabe do que trata.
- Ontem descobri que existe um livro que, no título, resume meu conto/novela.
- Hoje o autor do livro que estou lendo escreveu comentários elogiosos sobre o livro que resume meu conto/novela em um título.

Mais um na estante.

17 de set. de 2013


tocar a pedra do amor e nela afundar, um por um, todos os dedos. permitir que o amor atravesse poros e peles. que atinja os músculos e envolva os ossos e órgãos frágeis. ser forte e firme. tornar-se estável. sentir-se amado para construir um novo corpo: ser indolor.

16 de set. de 2013

Sublinhamento

... Estava condenada a ser forte porque todo o seu universo era precário. Eu sempre senti, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade subjacente. Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e você, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado. Para isso, no entanto, seria necessário que o nosso amor fosse também um pacto para a vida inteira.

André Gorz, no belíssimo livro Carta a D.

15 de set. de 2013

Uma escuridão bonita


Na páginas de Uma escuridão bonita, como em A bicicleta que tinha bigodes, também do Ondjaki, a ausência de luz elétrica é compensada pelo delicioso excesso de imaginação.
Um casal - provavelmente de pré-adolescentes - compartilha momentos de descoberta que são descritos com uma doçura cativante. O garoto, que às vezes parece desajeitado, como todos os apaixonados, busca, em revelações sobre a própria estória e breves gestos hesitantes, o encontro de dois mundos e o sabor do beijo da garota que trazia nos cabelos o cheiro do abacate.
A AvóDezanove está de volta, e sua estória com o soviético também voltou. Estão em Em Uma Escuridão Bonita as sensações, a lembrança da guerra, a ausência, a escrita poética e delicada, a leveza, os sons do entorno e o aroma de fruta, que, para mim, caracterizam a escrita do autor.
O livro, que é lindo, feito de páginas negras com letras e ilustrações em branco, retrata a estória em positivo. Uma Escuridão Bonita é também das entrelinhas, do não-dito, com breves lampejos de claridade transformadora, como no Cinema Bu. A escuridão bonita é como um sonho feito com sombras de sorriso, daqueles que despertam o desejo de voltar.

"Uma escuridão bonita é, talvez, a simples estória de um beijo."



Uma escuridão bonita - Ondjaki - 112 páginas - Pallas Editora

14 de set. de 2013

                        V


Onde quer que estejas, em teu país
ou em outro, és estrangeiro: ninguém
tua língua compreende. Só, o deserto
de estranhas veredas percorres.
Conservas, no entanto, dos primeiros anos
o albor, quando tua cidade, madrasta e mãe,
teus sonhos na noite fresca velava.
A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora.
Ah! Somos apenas o que somos. Apenas.


Luiz Ruffato, na página 43 do livro As Máscaras Singulares, publicado pela Boitempo Editorial

13 de set. de 2013

A Mulher Independente


Sou de uma família matriarcal, por isso aprendi o feminismo na prática, muito antes de me interessar por conhecer sua história e seus conceitos. A palavra feminismo, relacionada à minha existência, e não como algo distante e abstrato, é muitíssimo recente para mim.
Escolhi A mulher independente, um livro pequeno e de poucas páginas, para conhecer parte dos ensaios da Simone de Beauvoir, de quem eu só havia lido obras de ficção.
O livro foi composto por três excertos dos dois volumes do livro O segundo Sexo, e nele encontramos uma boa amostra das idéias que tornaram a escritora um dos grandes ícones do feminismo.
Inicialmente a leitura pareceu tratar de temas com os quais tenho familiaridade; encontrei no livro um discurso parecidíssimo com o que me acostumei a ouvir desde a infância.


"Foi pelo trabalho que a mulher cobriu em grande parte a distância que a separava do homem; só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta."


"Para ser um indivíduo completo, igual ao homem, é preciso que a mulher tenha acesso ao mundo masculino assim como o homem tem acesso ao mundo feminino, que tenha acesso ao outro..."


"... a vida em comum de dois seres livres é para cada um deles um enriquecimento..."




O texto da Simone me surpreendeu quando começou a fazer referências às mulheres que escolhem profissões criativas, especialmente às pretensas escritoras. Foi impossível selecionar uma frase para exemplificar minha surpresa; a reprodução de qualquer uma delas, ou de todas elas, configuraria uma confissão.


"... é raro que a mulher assuma plenamente o angustiante diálogo com o mundo dado. As pressões que a cercam e toda a tradição que pesa sobre ela impedem que se sinta responsável pelo universo: eis a razão profunda de sua mediocridade."


Não é agradável encontrar um espelho fiel à parte incômoda da realidade, por isso as palavras sobre as mulheres da arte, embora necessárias e muito bem-vindas, não foram verdades agradáveis de constatar.
Percebi que as mulheres que escolhem ou são escolhidas pela liberdade têm ainda um caminho trabalhoso e muito longo. A sociedade mudou muito pouco desde 1949, quando O Segundo Sexo foi publicado. O feminismo ganhou corpo e visibilidade, mas ainda vivemos sob a vigilância daqueles (e daquelas!) que acreditam que existem padrões aos quais deveríamos nos submeter.



A mulher independente - Simone de Beauvoir - 141 Páginas - Pocket Ouro/Editora Agir

12 de set. de 2013

10 de set. de 2013

Caminhámos sobre as águas

Caminhámos sobre as águas como os deuses,
E fomos deuses.
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
E os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos.


José Saramago, na página 71 do livro Provavelmente Alegria, publicado pela Editorial Caminho

6 de set. de 2013

Jerusalém, Jerusalém

O açafrão que comprei
botei na mala
e na mala botei
a roupa branca comprada
no mercado.

Minha roupa chegou
bordada de perfume
pano branco
com cheiro de dourado.


Marina Colasanti, na página 121 do livro Fino Sangue, publicado pela editora Record

5 de set. de 2013

Curva de rio sujo



Poucos dias antes de ler Curva de rio sujo, eu disse para o Kalebe que meu único problema com a leitura de contos e textos muito curtos era o fato de frequentemente não me apegar a eles, porque costumam ser tão rápidos que facilmente desaparecem. Talvez o livro (que, na Estante Virtual, custa menos que uma revista) tenha vindo ao meu encontro para contradizer a afirmação.
Os textos reunidos neste livro percorrem um caminho muito interessante, feito de diferentes cenários e linguagens. Precisei reler alguns textos assim que cheguei às últimas linhas, para, mesmo sabendo que a literatura é feita de dúvidas, ter certeza de que tinha acompanhado o raciocínio o autor. Com períodos longos e muitas vírgulas - amo vírgulas -, Joca Reiners Terron não escreve para preguiçosos.
As narrativas que tratam das tranqueiras acumuladas na curva do rio esbanjam sensibilidade sem ceder ao sentimentalismo; o autor descreve as cenas no ponto preciso em que o acontecido acontece, sem excesso de poesia ou outros floreios. Algumas histórias têm finais insólitos, que, de tão absurdos, parecerem retratar a realidade, e não fantasiar em flerte com a ficção fantástica, como algumas vezes acontece.
O rio sujo me ganhou pela amplidão que encontrei entre as margens criadas por Joca Reiners Terron, por isso quero conhecer os outros livros do autor.

Curva de rio sujo - Joca Reiners Terron - 136 páginas - Editora Planeta

4 de set. de 2013


"Silêncios, 
A eremita está alegre por estar em solidão. A eremita é encantadora com as palavras. A solidão leve e feliz é um aspecto da índole poética que habita alguns elementos mais cativantes deste nosso mundo. Uns fogem da solidão outros refugiam-se nela de modo a convalescer da intempérie que é grande parte do acto social."



3 de set. de 2013


Dia quente de verão

Folhas imóveis no bosque

quase pintura
           não fosse
           essa ave cantando


[Aclyse de Mattos]


Via Marina W.

2 de set. de 2013

Ideário

Uma coreografia inspirada na performance que minha colega, atriz, fez com chocalhos, cordões e pedras, e também na experiência da bailarina que se equilibra em facas ao dançar sobre o piano de cauda. Sem sapatilhas, piano ou tutu, porque não preciso ser clássica ou delicada. Minha dança não foi domesticada, não sou sou frágil. A tarefa inicial é descobrir um modo de manejar as facas sem que elas provoquem acidentes graves; como dançar entre lâminas sem prejudicar a beleza do movimento, ainda que os ferimentos provoquem dor.

Como sobreviver à dança entre objetos sinistros?

Talvez seja a grande pergunta, a maior de toda a minha existência. Cuidar dos cortes mais ou menos profundos que atravessam a pele e proteger os órgãos vitais é o que tenho feito desde o primeiro plié.

31 de ago. de 2013

Literária

não li nenhum dos livros que amo
mas amo todos os livros que tenho

30 de ago. de 2013

NOSSA SENHORA DO SILÊNCIO

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folhejo-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 254.

"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

28 de ago. de 2013

quero e sei que devo, mas não posso. em respeito às ordens do corpo, multiplico nãos quando preciso dizer sim. tenho órgãos e ossos que, me pertencendo, me anulam enquanto dividida entre desejo e possibilidade. tenho estado impossível. se fosse fiel aos sinais do universo, estaria lá. ou teria estado tanto lá a ponto de ter me perdido. ou perdido a minha graça. ou de ter sido descoberta uma farsa, daquelas que decepcionam ao milésimo olhar, na primeira palavra dita durante os três primeiros segundos do quarto mês.

27 de ago. de 2013

Sonhário

Rio de Janeiro. Calor, muito calor. Nem nos sonhos me liberto dos lugares-comuns ou -  para usar a expressão que o namorado odeia - dos clichês. Eu fugia de uma festa em uma fazenda lindíssima, onde passei alguns dias com o autor-diretor-ator-famoso por quem era (sou?) apaixonada, caminhando morro abaixo, entre casas espremidas em ruas muito estreitas. Sentia o tempo abafado e pedrinhas de asfalto na sola dos pés. Não lembro de como foi a noite de fuga, mas lembro que amanhecia quando fiquei paralisada porque encontrei um imenso urso negro passeando pela rua de onde era possível ver a areia e o mar. Fui socorrida por duas senhoras que, enquanto riam de mim, disseram que o urso vivia ali. Tomamos suco de laranja gelado acompanhadas pelo urso, que deitou ao longo de uma sombra de árvore que se estendia no piso amarelecido. A praia estava deserta e ensolaradíssima. Um dia lindo. Eu usava meu vestido branco de algodão. Acordei com a sensação de ter pisado na areia. Ficou tudo bem. Tudo bem.

26 de ago. de 2013

Sublinhamento


- As palavras, meu amigo, são como folhas numa árvore, e, para compreender por que uma folha é assim e não de outra maneira, é preciso saber como cresce a árvore, é preciso estudar! Um livro, meu amigo, é como um jardim dadivoso, em que existe de tudo: o útil e o agradável...

...

Eles me mostravam uma outra vida: a vida dos grandes sentimentos e desejos que levavam os homens a proezas e crimes. Eu via que os homens ao meu redor eram incapazes de proezas e de crimes, que eles viviam fora daquilo que se escrevia nos livros, e era difícil compreender o que havia de interessante em sua vida. Eu não quero viver tal vida... Isso me é bem claro: não quero...


Maksim Górki, no livro Ganhando meu pão, o segundo volume da auto-biografia do autor

22 de ago. de 2013


Fiz uma pilha de pequenezas na parte mais alta dos meus entulhos. Hoje um bilhete antigo suicidou. Enquanto Nietzsche só acredita em um deus que dança, eu creio em inutilidades que saibam voar.

21 de ago. de 2013

Iluminuras

Ou De saberes

Em água fria e vinagre refocilavam as cenouras, os brócolis e o pimentão, vez por outra olhando de soslaio a enigmática vagem desconfiada. Aguardavam cada um a sua vez de, durante a ducha que leva os resíduos, serem tocados suavemente por mãos carinhosas e delicadas. Eram inúmeros e multicolores, todos eles dispostos sobre a bancada que a terna luz solar do prenúncio de primavera iluminava.
Sorriam as batatas já sem casca, experimentando a nudez desconhecida, deslizando graciosamente entre os corpos umas das outras. Tomates brilhavam pequenas bolas escarlate; e picados, miudinhos, repousavam um só, amorfo, na grande tigela de vidro azul-celeste.
O cheiro-verde, sentindo a água que tocava seus joelhos, farfalhava salsas e cebolinhas aos pares, bailando como encantado a valsa conduzida pela leve brisa úmida que, depois de acariciar as violetas brancas e roxas no parapeito, perpassava a grande janela sob o vitral.
Às quase onze de inverno, o azeite era calor sonoro enquanto a cebola recém-transparente preparava-se para dourar.
A cutela ainda virgem descansa solitária, em paz eterna, na última gaveta, sob a sombra poeirenta que alcança o chão. Condenada ao esquecimento, não inspira piedade.
Aqui não matamos porcos.


23 de setembro de 2008, no meu falecido blogue Rango na Madrugada.

20 de ago. de 2013

Casa entre vértebras


Gosto dos autores que contam boas histórias, mas gosto ainda mais daqueles que escrevem como quem oferece frases e sentenças para serem saboreadas. Casa entre vértebras foi escrito por um poeta que conhece a medula das palavras e por isso escreveu prosa com jeito de poesia filosófica.
Não fui capaz de ler o livro como um romance, embora a palavra romance seja anunciada na capa, logo abaixo do título. Também não vi, durante a leitura, nenhuma grande semelhança com os textos da Clarice Lispector, que é mencionada no texto da orelha, escrito por Ivan Marques, porque sinto os livros da Clarice como mergulhos profundos em terras e águas muitas vezes sufocantes, e os capítulos curtos ou curtíssimos, quase sempre bastante densos, escritos por Wesley Peres, me permitiram respirar.
Durante a leitura tive a sensação de ter encontrado alguma semelhança com as divagações da Hillé, a Obscena senhora D., da Hilda Hilst, porque o narrador do livro escrito por Wesley Peres também parece imergir no estado de derrelição.
Se fosse preciso mencionar alguma outra referência, diria que em alguns momentos o autor se aproxima do português Gonçalo M. Tavares - que é um dos melhores escritores contemporâneos e está entre meus favoritos-, principalmente porque constrói frases precisas e certeiras, daquelas que inspiram e que ficam tatuadas na memória.
Embora tenha também alguns poucos passeios por lugares comuns, Casa entre véterbras é um ótimo livro. Wesley Peres, que foi elogiado por [meu amado] Manoel de Barros, é um autor de quem quero ler mais, para conhecer melhor.

Casa entre vértebras - Wesley Peres - 224 páginas - Editora Record

18 de ago. de 2013

Sublinhamento

... nunca dou sossego a mim mesmo e tenho a sensação de que estou devorando a minha própria vida, tenho a sensação de que, para fabricar o mel que entrego, num vazio, a pessoas que nem mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes.

Anton Tchekhov, em A Gaivota

17 de ago. de 2013

dançamos como se, ao som da cítara, nossos corpos se manifestassem em uníssono. como se os movimentos ocultassem o que as palavras não ditas e expressões malditas revelam sobre as relações esquartejadas. cerramos nossos olhos para obedecer ao ritmo, como se a melodia sobreposta à ausência do essencial e a música envolvente, aguçando os sentidos, apurassem o olhar. encenamos a alegria como se, diferentes dos outros, já não fôssemos transparentes. teatralizamos a felicidade para ocultar a dor de estarmos solitários entre nós.

16 de ago. de 2013

Livrinho de bolso da Bel #1


A Bel é uma das artistas mais talentosas, pessoas mais amáveis e amigas mais queridas que a vida me deu. Fiquei feliz quando soube que ela, corajosa, publicaria e venderia em uma feira de artes um livrinho com os poemas que escreve. Mas, como conheço a Bel que poetiza a vida melhor que a  Bel poeta de palavras, senti um pouco de medo quando recebi o meu exemplar. Entro em pânico sempre que alguém que amo e admiro sugere que eu leia seus escritos. Por mais que confie nos meus amigos talentosos, não sei mentir. E sei que nem todo mundo acerta sempre, mas a Bel acertou.
Hoje é aniversário da minha amiga e, porque queria senti-la mais próxima, reli o livrinho pela terceira vez. A Bel é dulcíssima e delicada, mas também irônica e ácida. A Bel é sensível, inteligente e bonita, muito bonita. Quando a Bel sorri o mundo inteiro sorri com ela e quando ela nos olha nos olhos - ela sempre olha nos olhos - é como se acendesse outra pessoa dentro de nós. A Bel tem abraços deliciosos porque abraça de verdade. A Bel é de verdade. E, sobre os poemas que a Bel escreve, só há uma definição possível: eles são a Bel.
Como disse para a Bel depois da primeira leitura, que fiz durante um amanhecer de domingo, ao som de bem-te-vis, alguns dos poemas me fizeram lembrar muito do Chacal, que é um dos poetas de quem mais gosto.
O livrinho de bolso da Bel traz leveza para a densidade dos dias azuis e é também uma ótima companhia para as noites de inverno. Os poemas que ele traz são para todos os momentos, sempre. Exatamente como a Bel.


Livrinho de bolso da Bel #1 - Bel Mendes - 48 mini páginas - Namoita

15 de ago. de 2013

gosto de andar em círculos
andar em círculos é melhor
                                       que
                                              estar
                                                      sempre
                                                                  c
                                                                    a
                                                                      i
                                                                       n
                                                                         d
                          
                                                                            o


14 de ago. de 2013

Um livro

No começo da semana li um livro com um título muito atraente. Um livro com um ótimo título e um lindo índice, que me levaram a pensar que seria um daqueles livros pelos quais é impossível não me apaixonar. A autora, doutora, mestre, pertencente às academias todas, me seduziu também pelo currículo, resumido na orelha da quarta capa. Currículos podem ser sedutores, ainda que eu quase sempre os ignore. Não gosto de escrever sobre livros dos quais não gostei porque sei que muitas pessoas trabalharam para que eles fossem publicados. Me recuso a mencionar autores e títulos dos livros ruins porque nenhuma crítica é aproveitável para o livro que publicado está. A autora do livro teria produzido um bom texto se fosse uma adolescente redigindo um trabalho escolar a partir da realização de pesquisas no Google; teria feito um ótimo livro se poupasse o leitor das tentativas de poesia e dos finais repetitivos e autoajudísticos que, nos últimos parágrafos dos capítulos, mencionavam, implícita ou explicitamente, o título da obra. Talvez tenha sido uma tentativa de tornar o texto acessível e fugir do academicismo. Talvez tenha sido um teste, uma tentativa de explorar novas formas. Não sei quase nada sobre a autora, mas imagino que ela pode ter sido acometida por uma súbita falta de talento para a literatura, também. Entre talvezes e imaginações, é certo que a autora ou a editora que publicou o livro precisam desesperadamente encontrar uma nova revisora ou um novo revisor. É triste, tristíssimo, ler um livro com uma revisão absurda e dolorosamente mal feita; uma revisão espantosamente ruim.

13 de ago. de 2013

12 de ago. de 2013

a vida se derrama
em possibilidades

quando o som dos bem-te-vis anuncia mais um dia de sol

11 de ago. de 2013

Para o pai da assassina do meu avô


Há monstros que não têm nome.



As primeiras palavras que o ouvi falar, quando ainda não sabia quem era, foram os argumentos que usou para justificar sua ausência durante todos os muitos dias em que seu sobrinho esteve hospitalizado. O senhor não sabia quem eu era, mas eu e seu sobrinho, de quem sou amiga e a quem fiz companhia desde o primeiro dia de internação, sabíamos que sua filha havia sido a assassina do meu avô. O senhor não sabia quem eu era e insistiu em saber sobre a minha família, porque é assim que acontece entre seus iguais. O senhor não sabia quem eu era e continuou sem saber, porque eu não disse nenhuma palavra além dos nomes e profissões dos Vieiras e Ribeiros que me antecedem.
O senhor não sabe, mas, na tentativa explicar o inexplicável, esclareceu as dúvidas que me acompanharam durante anos. Era-me incompreensível o fato de a minha avó não ter sido procurada por vocês senão para assinar o documento em que abriria mão da indenização determinada pela justiça; permanecer indiferente e não se arrepender do fato de ter sido responsável pela morte uma pessoa sempre me pareceu demasiadamente cruel. Também não entendia como, condenada a prisão domiciliar, que impunha reclusão a partir das 20h, sua filha frequentou todos os anos do curso universitário no período noturno. Naquela tarde, ouvindo-o argumentar colericamente ao lado de um leito de hospital, como se não estivéssemos em um ambiente que exige alguma delicadeza e existissem argumentos que amenizassem o fato de sua filha ser uma assassina, compreendi quão deprimente alguém pode ser.
Não sei durante quantos minutos ouvi os absurdos que dizia, mas não lembro de, algum dia, ter sentido tanto nojo quanto naquele momento. Na sua presença, eu senti, pela primeira vez, uma vontade quase incontrolável de acabar com a vida de uma pessoa. O senhor deveria agradecer por eu ser neta daquele que foi morto pela sua filha, daquele que me ensinou muito sobre justiça e que foi um dos meus exemplos de caráter. Tenho me tornado quem sou graças a ele, por isso foi também graças a ele que o senhor, que já é idoso, não foi sequer agredido verbalmente, porque eu emudeci.
Hoje sei que o senhor tinha razão quando disse que sua filha foi vítima. Ela é uma vítima, sim. Mas não foi vítima dos amigos maus que a induziram a consumir álcool em excesso durante a tarde de domingo ou do amigo de má índole que emprestou o carro que ela dirigia quando matou o meu avô. Sua filha é vítima de um péssimo exemplo paterno, vítima de má educação. Sua filha é a vítima assassina de uma família que, graças a ela, foi devastada. Sua filha é vítima e, ao contrário do que o senhor sugeriu quando tentou encontrar similaridades entre nós duas, porque temos quase a mesma idade, tem raízes que me são completamente estranhas e vive sob princípios e valores que a tornam muitíssimo diferente de mim.

10 de ago. de 2013

Sublinhamento

Fazer arte, fazer esteticismo, é ter em vista a aprovação, o efeito furtivo, exterior, passageiro, mas também procurar exteriorizar sentimentos graves, procurar atitudes essenciais do espírito, querer dar aos espectadores a impressão de que eles arriscam alguma coisa, vindo ver nossas peças, e tornando-os sensíveis ao espírito de uma nova idéia do Perigo, creio que isto não é fazer arte.

Antonin Artaud, no livro Linguagem e vida

8 de ago. de 2013


o meu amor
foge de casa
e anda na rua
sobre as poças
de luz azul

o meu amor
faz seresta
sob a janela
fechada
para a triste
lua cheia

o meu amor
respira e cala

o meu amor
morre
em mim


7 de ago. de 2013

"Se podes olhar, vê."



Resmas de colorir
 o prato de quem leva;
 resmas para tornar farta
 a mesa de quem ficou.



Feira livre, em Rio de Contas - Chapada Diamantina - Bahia
Fotografia de Cléria Vanusa

5 de ago. de 2013

Das notícias

Ser negro ainda é notícia. Ser mulher ainda é notícia. Ser mulher bonita é notícia. Ser mulher feia é notícia. Ser muito jovem é notícia. Ser velho demais (quem é velho demais?) é notícia também. Talvez SER seja a maior notícia no mundo que considera que o ideal é ESTARMOS todos iguais.

Resposta a um desabafo escrito pela Cláudia, no blogue Mau Feitio, que é sempre ótimo.

4 de ago. de 2013

Elena e todos nós

Sobre o filme Elena


O filme é lindo. Doloroso e lindo. Poético e lindo. Melancólico e lindo. É uma linda declaração de dor - e de amor.
Lendo os comentários sobre o filme, depois de tê-lo assistido, vi que um rapaz escreveu que todo mundo é um pouco Elena. Discordo da afirmação e sei que glamourizar e banalizar as psicopatologias, além de serem práticas perigosas, não foi a intenção de Petra Costa.
Compreendo que, ao conhecer Elena e o núcleo familiar retratado no filme/documentário, muitos se identifiquem com a dor da perda e com as angústias e situações desesperadoras. Somos todos feitos de ausências, mas nem todos adoecem por isso. Nem todos conhecem a sensação de ser minúsculo e, simultaneamente, alcançar as grandezas de um corpo que carrega sofrimentos sempre maiores. Todo mundo é muita gente. E felizmente nem todo mundo conhece a dor insuportável de estar em si. Nem todo mundo se perde em caminhos sem volta. Nem todo mundo desaparece do mundo de uma maneira absurdamente dolorosa. Nem todo mundo é Elena. Ainda bem.
Eu gostaria de dizer que Elena me atingiu como uma faca no peito, mas isso não aconteceu. Sinto como se, ao ver o filme, tivessem enfiado uma colherinha entre as minhas costelas, uma colher de cabo longo, feita de metal gelado, que dilacerou a pele antes de atravessar a carne, e que desde ontem mexe lentamente todo o lodo que tenho em mim.

3 de ago. de 2013

É uma fuga para dentro se você quiser, é o encontro de grande amor, sabe, quando a gente pensa que não existe mas de repente você passa a pegar e sentir em tudo, é uma tremenda verdade de encontro que estou vivendo agora. ... A gente começa a viver de tal maneira que as palavras se tornam precárias para a vida.

Excerto de uma carta de Maria Bonomi para Clarice Lispector, no livro Correspondências - Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero

2 de ago. de 2013

Muletas

Não escrever deveria ser libertador, mas é um fardo tão pesado quanto fazê-lo. É como perder um membro; logo depois da amputação você sabe e vê que ele já não existe, mas ainda sente como se ele estivesse no mesmo lugar - por isso acontecem tantas quedas entre aqueles que por vezes esquecem que já não têm uma das pernas e procuram apoio no vazio.
Adaptamo-nos a tudo, inclusive às mais dolorosas ausências. Há inúmeras outras maneiras de caminhar.

31 de jul. de 2013


o assombro provocado
pelo pulsar das paredes
que, desabadas, ainda vivas
permanecem
entre mim e o outro

reparado
sob a falência dos corpos
e o desespero dos nossos
entulhos desinspirados,
um sopro


30 de jul. de 2013

: derrelição

há pessoas que dizem fazer o que não fazem. que assinam o que não escrevem. pessoas quebrando promessas vazias e as caras umas das outras. há pessoas quebrando a cara. pessoas imundas e nocivamente vaidosas. pessoas imersas num oceano de mentiras. há mentiras terríveis, faltas graves. muitos caminhos áridos para as mãos. não temos a força das raízes e nem a grandeza das copas das menores árvores. respiramos mal em um mundo indigesto. um mundo de crueldade em que só os piores podem triunfar.

29 de jul. de 2013

"Se podes olhar, vê."



Descansa sob o peso de si e sonha,
apesar de todos os pesares.



Feira livre, em Rio de Contas - Chapada Diamantina - Bahia
Fotografia de Cléria Vanusa

28 de jul. de 2013

Dois livros: Afonso Cruz


Os comentários feitos pela Inês, que compartilha suas experiências de leitura e bom gosto literário no blogue OMG! She's a book reviewer!, e o ótimo título do livro Jesus Cristo Bebia Cerveja, despertaram em mim o desejo de conhecer este e outros livros escritos pelo Afonso Cruz.
Depois de muitas dúvidas, porque todos os livros do autor têm títulos e premissas atraentes, escolhi três livros para começar a aproximação -  infelizmente não é possível ler ou ter toda a bibliografia de uma só vez ou imergir nas obras de todos os autores que parecem interessantes.
A Boneca de Kokoschka será lido em agosto, mas os outros dois foram lentamente devorados e antropofagicamente se transformaram em parte do eu.


O Livro do Ano, que é um livro lindo, lindo, lindo (sim, três vezes lindo), foi escrito e ilustrado pelo autor. E, embora seja preto, com algumas páginas negras e capa dura, é um livro feito de luz, porque é leve. Nele, Afonso Cruz escreveu e desenhou a vida de uma menina perguntadeira, que volta os olhos curiosos para as relações humanas e para o mundo; que nos descreve, com breves frases poéticas, situações cotidianas e indagações.
O Livro do Ano é um daqueles livros que embonitam a estante, que são bons presentes para os que amamos e que, durante a leitura e as releituras, fazem ecoarem as dúvidas e acalantam o coração.


O Livro do Ano - Afonso Cruz - 144 páginas - Alfaguara Portugal





Durante a leitura das primeiras páginas de Jesus Cristo Bebia Cerveja percebi que tinha nas mãos um bom livro e senti que faria meus todos os elogios escritos pela Inês, mas estava enganada. O livro, que conta, entre outras histórias, a história de uma garota que vive com a avó adoecida que deseja conhecer a Terra Santa, é muito melhor do que eu ousaria imaginar.
Um dos personagens do livro me fez lembrar muito do Settembrini, de A Montanha Mágica, do Thomas Mann - que é um dos meus livros favoritos na vida - porque discursa em um tom semelhante e parece desejar ocupar um espaço parecido na trama. Não costumo me afeiçoar a personagens e, ainda que Settembrini seja um dos poucos pelos quais nutro afeto profundo, quase apego, não me senti inclinada a gostar mais de um personagem que dos outros porque muitos deles são igualmente surpreendentes, como são surpreendentes os caminhos e destinos das histórias contadas pelo autor.
Me senti angustiada, à beira das lágrimas, muitas vezes, durante a leitura; mas precisei conter o escândalo das gargalhadas três linhas depois. A criatividade do Afonso Cruz desconhece limites. Por isso, nas últimas páginas, já parecia natural encontrar palavras sobre religião, sobre a tristeza da morte e da decrepitude, sobre a nossa condição de abandono e um sermão sobre a importância das minhocas ou um avião de striptease, no mesmo livro.
Quando entrevistado, Afonso Cruz costuma responder sobre as muitas viagens que fez pelo mundo. Talvez a melhor das viagens aconteça no universo prodigioso que ele carrega consigo, e que, generosamente, transforma em livros que dão origem a outros mundos em nós.


Jesus Cristo Bebia Cerveja - Afonso Cruz - 248 páginas - Alfaguara Portugal


26 de jul. de 2013

Sublinhamentos


Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são "meu" e "minha", que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa, apenas um deles diria "meu". E aquele que diz "meu" para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para quê isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.

Excerto de Kholstomér - A história de um cavalo, no livro O diabo e outras histórias, do Liev Tolstói

24 de jul. de 2013

(In)capacidades

Sou capaz de compreender os que têm fé e os que cultuam os próprios demônios. Compreendo que quase todos os que alimentam demônios acreditem que os tormentos sejam produzidos pelo entorno, sempre no exterior de si. Compreendo até mesmo as pessoas que fazem da ostentação uma cultura e do acúmulo de posses a única possibilidade. Procuro ser compreensiva com aqueles que preferem o entretenimento em detrimento da arte. Sou capaz de compreender os que preferem se abster de arte, sobretudo os que têm bons argumentos para justificar tal abstenção - porque são, inconscientemente, artistas. Mas não há nada no mundo que me torne capaz de compreender a imobilidade mantida diante do sofrimento alheio; não consigo sequer imaginar qual é a parte da matéria humana que, endurecida, transforma pessoas em seres incapazes de manifestar compaixão.
Entristecida, lamento por aquele que, ainda que não perceba - porque nunca percebe -, se sentiu diminuído. Lamento ainda mais por quem, tendo em si todos os sentidos, tornou-se portador de uma sensibilidade débil, incapaz do gesto e cego pela frieza do olhar.

21 de jul. de 2013

Amor em texto, amor em contexto


"Ouvir o outro é uma forma de amor. O sujeito amoroso é alguém que está disponível, que se abre para o outro..."

A Ana Maria Machado foi uma das primeiras autoras favoritas, ainda na infância, e o Moacyr Scliar, de quem ainda não conheço a obra ficcional, sempre me pareceu um bom escritor e um homem digno de admiração e respeito. Gosto muito de livros de cartas e de conversas entre autores porque me interesso pelas pessoas que escrevem livros e porque acredito que uma das principais qualidades dos livros é nos tornar mais humanos, para que possamos suportar e compreender a convivência com os outros humanos a ponto de desejarmos a riqueza de estar entre os que são diferentes de nós.

"É na conversa que o amor se sustenta, não é!?


Durante a leitura de Amor em texto, amor em contexto, que é a transcrição de uma conversa entre os dois escritores, senti como se estivesse próxima das vozes que falavam sobre o amor, sentada à mesma mesa ou dividindo o sofá de uma das salas da Academia Brasileira de Letras. O diálogo, em que ambos começam dissertando sobre o amor e sobre o amor na literatura de forma generalizada, definindo os conceitos filosóficos e históricos do amor e do amor retratado pela literatura, não segue um padrão linear, por isso é transmitido ao leitor com uma forma deliciosamente real.

"Só os homens podiam ler e escrever, pois o texto, como instrumento de poder que é, tinha de estar na mão dos homens."


Gostei especialmente de perceber como ambos foram capazes de, em poucas páginas e palavras, dizerem muito de si e da própria história - de modo que é claro que o diálogo aconteceu entre a Ana Maria Machado feminista e o médico Moacyr Scliar - e que, embora sejam duas pessoas com histórias e formações diferentes, tenham sido capazes de produzir um diálogo frutificante, que vai de Sócrates aos relacionamentos virtuais, passando por temas como religião e psicanálise, porque ambos conduziram as palavras e raciocínios para a mesma direção.

": é mais fácil ser sectário do que ser compreensivo."
...
"O raciocínio por detrás da tolerância é mais complexo."


Li Amor em texto, amor em contexto em uma tarde; mas ainda o estou digerindo, refletindo e pesquisando sobre o que li e desconheço. É um livro leve, simples, de fácil leitura, ótimo para um domingo bonito. Mas é também um dos livros que carregarei pela vida porque, ao despertar o que já existia e trazer novos desejos e saberes a quem sou e desejo me tornar, ele está em mim.


Amor em texto, amor em contexto: Um diálogo entre escritores - Ana Maria Machado / Moacyr Scliar - 112 páginas - Editora Papirus 7 Mares

20 de jul. de 2013

Sublinhamento

O poeta, à medida que avança, apaga os rastos que foi deixando, cria atrás de si, entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais coincidirá, jamais se justaporá à do poeta, única e finalmente indevassável.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote - Diário II

19 de jul. de 2013

Trois


I. O corpo que dança pode pulsar além do coração.

II. Diferentes instrumentos afinados pela poesia: um grupo de dança.

III. A coreografia em que cada movimento seja um cair em si.

17 de jul. de 2013

Quinta-feira, Abril 02, 2009

A dor que não doía nos ossos, músculos ou pele; a dor que excedia a carne amanheceu desperta pela atípica luz quase fria do verão: realidade. Tortuosa estrada de rumos incertos e sem retorno, margeada por sombrios bosques de abandono e pelo podre oceano além-abismo do desespero. Consciente, dissolve-se no absurdo a que se acorrenta. Contando inúmeros e resistentes elos inquebráveis, mergulha no profundo azul insípido, frágil e sem beleza. Aperta com força cacos pontiagudos entre as mãos. Se esvai carmim com a brisa pouca, quase ridícula. Brilho líquido, entorna o cálice. Olhos cerrados, exige de volta a ignorância. Desconhece. Tateia a brasa que logo cede flamejante. Em chamas, deseja o nada - quer agora a confortável escuridão.

15 de jul. de 2013

Dia do Homem

Hoje li muitas páginas de um romance da Virginia W., no qual a leitura parecia ter empacado, e terminei de ler um livro de poemas da Marina Colasanti, que escreve lindamente e eu só conhecia de um texto na oficina do Becê. Li muitas páginas de palavras bonitas muito bem postas em histórias bem escritas. Ainda assim, confesso que foram os textos que li no fundo do poço de lama que são as redes sociais que me fizeram sentir vontade chorar. De desgosto.
Não consigo acreditar que o dia do homem seja levado a sério por eles!
Li textos ridiculamente pobres, escritos por homens que têm entre vinte e trinta e poucos anos, repetindo o discurso do patriarcado, sobre os homens serem os protetores, os provedores, os guardiões... e serem, segundo as palavras deles, tudo que uma mulher quer. Sim, eles parecem acreditar que um homem é tudo que uma mulher quer. É desnecessário mencionar que há mulheres que, mais que a um homem, desejam outras mulheres. Não é o meu caso, mas, por acaso, tudo o que eu queria hoje, especialmente hoje, era um par de botas azuis com fivelas e spikes dourados. Não são botas para uma heroína e nem foram trazidas por um herói salvador de mocinhas frágeis e incapazes - eu, como muitas outras mulheres, não espero que meus desejos de consumo sejam atendidos por alguém do sexo oposto. São botas azuis nas quais eu investi o dinheiro que é fruto do meu trabalho. São botas azuis que eu desejei e que foram compradas por mim.
Botas à parte, li também que alguns rapazes se sentiram ofendidos com a pouca sensibilidade das mulheres a um dia tão importante. Alguns deles, dois ou três, mencionaram que a data deveria ser tão comemorada quanto o dia da mulher. O que eles esperavam? Uma cerveja? Uma mesa com bolo e outros doces? Uma medalha ou um certificado de melhor macho do mundo? Se queriam o apoio das mulheres machistas - para vergonha de muitas de nós -, eles conseguiram. Muitas gostaram das declarações feitas pelos candidatos a príncipe encantado. Pelo alto nível de desinformação, todos os envolvidos estão de parabéns.
Eu não celebro o dia da mulher e não espero receber, nesta ou em outra data, um prêmio de consolação por sobreviver calada sob o manto do machismo, porque não me calo e não me submeto a ele. Mas espero, sinceramente, que aqueles que se sentem ofendidos com a irrelevância do dia do homem saibam fazer bom uso das ferramentas de pesquisa para descobrir quais foram os acontecimentos que, em 1917, registraram a importância histórica do dia 8 de abril. Sugiro que procurem informações sobre o dia 25 de março de 1911 ou sobre a história das mulheres que tiveram suas vidas ceifadas por uma sociedade dominada por pessoas tão pouco esclarecidas quanto vocês.
Posto isto, conversaremos no ano que vem.
Não sei se minhas botas azuis resistirão até 2014, mas estou certa de que continuarei dispensando as rosas e os chocolates no oitavo dia de abril.
Prefiro lírios brancos sem data marcada, todos os dias e sempre.

13 de jul. de 2013

Sublinhamento

:através da assobiada maneira de existir, ele permitia que alguma tristeza se esvaísse, deixando o espaço rigorosamente necessário para a próxima dose de tristeza. Através do que era belo para os outros, a solidão fazia-se circular nele, permitindo que se não sufocasse, mas impedindo-o de conhecer a paz.
O Assobiador sonhou que a intensidade bélica do seu assobio encantava o mundo porque ele era nem mais nem menos do que o distribuidor enganoso e exclusivo que a tristeza arranjara para mostrar à Humanidade apenas a sua face bela.


Ondjaki, no livro O Assobiador.

11 de jul. de 2013

Dez bons conselhos de meu pai


Só muito recentemente, depois de muitos livros e amor pelo escritor, conheci os livros que o João Ubaldo Ribeiro "escreveu para crianças" - uso aspas porque estou entre as pessoas que não costumam classificar boa literatura segundo a faixa etária dos leitores para os quais supostamente se destinam os livros.
Hoje comecei o dia muito bem impressionada com a leitura de mais um livro do autor de Viva o Povo Brasileiro, que considero um dos grandes livros da minha vida. Dez bons conselhos de meu pai é, como mostra a imagem acima, um livro bonito. Dos livros bonitos todo mundo gosta, os livros bonitos todo mundo quer. E se o conteúdo dos livros bonitos for interessante, o passeio através das palavras será ainda mais prazeroso.
As notas das orelhas e da quarta capa contam um pouco sobre a infância do autor, sobre a vida do pai, Manuel Ribeiro, e sobre a relação entre eles, que foi marcada pela valorização da cultura e pela presença dos livros. As sentenças que determinam os dez bons conselhos enumerados começam todas com um enorme não: não seja burro, não seja amargo, não seja ignorante... mas a todas elas sobrevêm grandes sins feitos de pequenas frases que encorajam o aprendizado, a boa auto-estima, a auto-suficiência e a felicidade cultivada a partir do constante questionamento das nossas atitudes e dos gestos daqueles que nos rodeiam.
Sinto vontade de transcrever integralmente o texto do livro, porque ele merece ser lido. Não devo fazê-lo porque talvez a experiência seja empobrecida sem as ilustrações feitas pela Bruna Assis Brasil. E também porque, apesar de João Ubaldo supor que seu pai "não se incomodaria por eu passá-los (os conselhos) adiante, pois ele também tinha muita consciência política", penso que quem comercializa o livro - que merece todas as boas vendas - talvez não pense assim.


Dez bons conselhos de meu pai - João Ubaldo Ribeiro - 56 páginas - Editora Objetiva