30 de jul. de 2012

Biblioteca: três russinhos



Nem me passava pela cabeça, então, que o homem não é uma planta e não florece todo ano. A juventude come pães doces e dourados, pensando que é esse o pão de cada dia; no entanto, chega a hora em que se faz qualquer coisa até mesmo por um pãozinho comum.

Ássia - Ivan Turguêniev - 120 páginas - Cosac Naify


Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as três paredes, esses talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada, representam como as pessoas comem, bebem, amam, andam, vestem seus casacos; quando, das cenas e das frases mais banais, tentam desencavar uma moral - pequenina, fácil de entender, útil para fins domésticos; quando, em mil variantes, me apresentam sempre a mesma coisa, então eu fujo correndo, como Maupassant fugia da torre Eiffel, que lhe oprimia o cérebro com sua vulgaridade.

A Gaivota - Antón Tchekhov - 112 páginas - Cosac Naify



"Que criatura destruidora e cruel é o homem, quantas plantas, quantos seres vivos diferentes ele não destruiu, para a manutenção de sua vida!" - pensei, procurando involuntariamente algo vivo no meio do assolado campo negro.

Khadji-Murát - Liev Tolstói - 224 páginas - Cosac Naify



Os três livros integram a bonita coleção Russinhos, da Cosac Naify, da qual também faz parte o livro Uma criatura dócil, sobre o qual já escrevi aqui.

Ássia foi meu primeiro encontro com Turguêniev. Até ser encontrada pelo livro eu não sabia da existência do autor - menos conhecido, no Brasil, que os outros grandes romancistas russos do século XIX. Me apaixonei pela escrita precisa e pela delicadeza com que retrata os personagens e as condições emocionais e sociais que compõem o belo e doloroso amor impossível. Terminei o livro desejando conhecer outras obras do Turguêniev.

Apesar de me comover com as encenações das estórias do Tchekhov, durante muito tempo fugi da leitura das peças, porque me imaginava incapaz de ler uma peça de teatro que parecesse muito complexa, na qual figurassem muitos personagens - antes dela havia lido Entre Quatro Paredes, do Sartre, algumas peças e cenas do Nelson Rodrigues, e nada mais. Perdi o medo, venci o preconceito que usava como defesa e não me arrependo de tê-lo feito. Durante a leitura de cada uma das páginas da escrita deslumbrante de A Gaivota descobri personagens e vidas intensos e extremamente humanos, vivendo em cenários distantes daqueles com os quais estamos habituados, mas encenando vidas muito próximas das vidas que vivemos, retratando sentimentos e sensações comuns a muitos de nós.

Tolstói é um dos meus autores favoritos, mas não me interessei muito pela temática abordada em Khadji-Murát. Talvez tenha sido pouco generosa; não costumo gostar de histórias de guerra e, mesmo que tenha empreendido algum esforço para nutrir afeto pelo livro, sinto que fracassei. Embora a escrita do livro seja belíssma e os personagens e histórias muito bem descritos - as cenas são quase cinematográficas -, não creio que se torne, um dia, um dos muitos livros que pretendo reler.

Biblioteca: Diferente como Chanel

A leitura de Diferente como Chanel me fez lembrar do livro Moda: uma História para crianças, publicado pela mesma editora.
Além de a edição ser belíssima e ter ilustrações maravilhosas, ricas em detalhes, o texto é bastante acessível, sem ser vazio.
O livro conta como Chanel venceu as adversidades e ficou famosa a partir da autenticidade, por ter adequado a moda às necessidades do tempo e do lugar em que viveu.
Gosto da proposta de alinhar, em livros infantis - mas não só neles -, a História da Moda com a História geral; da visão da moda como um reflexo da sociedade, como forma de adequação às necessidades que vão além da estética e da auto-afirmação.
Vivemos dias em que a moda, como quase tudo, parece composta por efemeridades, superexposição e consumo desenfreado, por isso a delicadeza despretensiosa (é só um livro infantil!) de Diferente como Chanel pode ser um bom primeiro convite à reflexão.

Diferente como Chanel - Elizabeth Mattews - 40 páginas - Cosac Naify

29 de jul. de 2012

Tuitéria

Labiríntico é um adjetivo de reencontro.

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Certeza é um substantivo de enganação.

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Fazer do movimento um abrigo: a dança no centro do abraço.


25 de jul. de 2012

Biblioteca: José Luís Peixoto, eu e a minha avó

Escolhi dois livros do José Luís Peixoto porque vivi, durante a leitura de ambos, experiências semelhantes, provocadoras de reações diversas.
Abraço, como o nome sugere, é um livro confortável, composto por crônicas que contam histórias deliciosas, que nos aproximam do autor. A Mãe Que Chovia, apesar de ser um livro infantil, conta uma estória inquietante - de uma inquietude grandiosa e boa, mas ainda assim inquieta para as crianças experimentadas, como eu.
Li boa parte do Abraço em voz alta, para a minha avó, que tem 81 anos e que, apesar de gostar de estórias e histórias (e de ter sido a primeira fabuladora da minha vida, durante as noites de férias, na minha infância), conquistou, com o passar do tempo, pelo vento que vincou a pele luminosa, o direito à preguiça de ler.
Durante leitura das crônicas em que José Luís Peixoto relata as experiências da infância e da juventude, vi brilharem os olhos azuis mais bonitos e curiosos de que tenho notícia. Foi maravilhoso descobrir que, apesar de muitos anos e um oceano de distância entre eles, minha avó tem recordações de vivências muito parecidas com as do autor que admiro. Interrompemos muitos parágrafos para compartilhar nossas histórias, relembrar momentos do passado recente e trocar impressões sobre o nosso tempo, que é sempre o presente, o agora - na nossa família todo tempo é hoje.
Entre as crônicas do Abraço, acompanhadas por sorrisos intermináveis que exprimiam o indizível, pudemos "reler" muitas histórias que nos transformaram em quem somos, que são parte de nós. A partir da leitura, das palavras que ecoaram pelo quarto e pela sala, Abraço tornou-se parte da nossa riquíssima biblioteca - vidoteca? ou memorioteca? - afetiva e familiar.
A Mãe Que Chovia, como o título sugere, conta a estória de um filho da chuva. Repeti a contação de estória para a minha avó, compartilhando também as bonitas ilustrações do Daniel Silvestre da Silva, no livro que é todo poesia.
Senti em A Mãe Que Chovia uma imensa força do feminino, que me é tão caro. A grandiosidade do amor materno, a ausência da mãe (porque já vivi mais da metade da minha existência com esse buraco de mãe, que é para sempre) e o poder do sentimento que nos uniu.
Interrompi a leitura muitas vezes, às lágrimas. Durante as últimas páginas, éramos três mulheres - eu, a minha avó e minha mãe, a filha dela - ainda mais filhas, ainda mais mulheres, ainda mais "mães" e muito mais fortes, porque nos sabemos cultivadoras do que nos permite, sendo muitas, sermos também uma, que é a soma de todas nós.


Abraço - José Luís Peixoto - 680 páginas - Quetzal Editores

A Mãe Que Chovia - José Luís Peixoto - 64 páginas - Quetzal Editores

19 de jul. de 2012

Amarração

Núcleo de pessoas que, com o passar dos anos, tornam-se estranhamente desconhecidas. Seio da violência maior e do carinho desmesurado, berço de afetos muitos e de poucas afeições. Sangue compartilhado entre corpos constituídos por materiais intolerantes, vidas distantes em experiências diversas.
Somos sombras irmãs que caminham em direções opostas. Calor, conforto, lágrimas, abraços, reconciliação e abandono. Ódio. Amor. Ódio.
Estamos infelizes à nossa maneira, Liev T.

Sublinhamento

A linguagem é produto do exercício do poder, que entre nós é masculino. Estas divisões clássicas estão a serviço da sociedade masculina, responsável pelo ato de nominar "feminina" a produção da mulher de sensibilidade exacerbada, diariamente contrariada e dimunuída pela lista de haveres domésticos. Deste modo, mesmo a mulher de escritura "masculina" (máximo de elogio), nada mais fez que adotar o ponto de vista cultural da sociedade masculina, de que se origina.


Nélida Piñon, em entrevista a Clarice Lispector.

13 de jul. de 2012

Tuitéria

Dançar é invisível, é dentro. O movimento é verbo dos pés desenhando o solo, pontuação da pele acariciada pelo ar.


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Lamber palavras: ganhar eternidade entre a saliva e o desejo.

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Silêncio ecoando pelos poros; a ausência de sensações.


12 de jul. de 2012

Biblioteca: O Bairro


Me dei as caixas da coleção O Bairro de presente no último Natal. Como as receberia no início do ano, me propus, desde a encomenda, a ler os livros aos poucos - um ou dois por mês. Não aconteceu exatamente assim, mas quase. Devo ter terminado a leitura de todos eles em meados de abril.
Os títulos da coleção homenageiam grandes autores e o bairro construído por Gonçalo M. Tavares não é feito de ruas e avenidas, mas constituído por pessoas-casa. Em cada livro o autor apresenta uma forma de escrever e de raciocinar, algumas inacreditavelmente interessantes e outras maravilhosamente deslumbrantes. Embora eu tenha cinco ou seis favoritos, nenhum dos livros é sequer mediano, todos eles são ótimos. A edição dos livros, as gravuras e capas duras coloridas, os tornam ainda mais desejáveis.
Os livrinhos que compõem a coleção têm poucas páginas, mas nelas as palavras se mostram meios para plurificar. Muitos comentam sobre a capacidade que os livros do Gonçalo M. Tavares têm de inspirar aqueles que produzem arte. Acredito que isso seja observado porque o autor quase sempre nos conduz a deliciosas viagens interiores na companhia dos personagens que transformamos em parte de nós - que, como todos eles, somos também palavra.
Durante a leitura dos livros dO Bairro, senti as palavras reverberarem, porque Gonçalo escreve também com e para o corpo. É com prazer que, meses depois, noto que a releitura de trechos dos livros continuam acendendo fagulhas de algo que havia adormecido em mim.
O Bairro do Gonçalo M. Tavares é, definitivamente, um dos lugares onde gosto de morar.
Li por aí que a coleção não foi encerrada e que, em breve, novos moradores virão. Já preparei bolo, chá e abraços, para receber os novos companheiros da vizinhança crescente.


Caixa O Bairro I: O Senhor Valéry, 82 páginas; O Senhor Henri, 98 páginas; O Senhor Juarroz, 64 páginas; O Senhor Breton e a Entrevista, 68 páginas; O Senhor Kraus, 124 páginas - Gonçalo. M. Tavares - Editorial Caminho

Caixa O Bairro II: O Senhor Calvino, 80 páginas; O Senhor Brecht, 65 páginas; O Senhor Eliot e as Conferências, 86 páginas; O Senhor Swendenborg e as Investigações Geométricas, 124 páginas; O Senhor Walser, 48 páginas - Gonçalo M. Tavares - Editorial Caminho

9 de jul. de 2012

Suposição

À distância, observo os braços que se agitam em sufocantes acenos desesperados. Olho para a bela figura com respeito e admiração, com carinho afetuoso e ternura, sem condescendência.
Suponho que tenha sido um daqueles a quem o pai presenteou com bolas, soldados, patins, skates, bicicletas e os brinquedos todos. Dono dos jogos de futebol, dos melhores videogames e também da fragilidade dos colegas do bairro. Líder de muitas outras vidas, o dono da rua.
Suponho que tenha sido o neto mais bonito da vovó e o mais inteligente para o avô, velho poeta a quem os mais próximos chamavam mestre. Que tenha sido o que ostentava as melhores notas da classe, o melhor da escola e dos esportes nos quais se aventurou, também é uma suposição.
Suponho que sorri exibindo a perfeição das arcadas dentárias e que, quando as muitas saudades transbordam, lacrimeja. Que transpira, saliva, e que, eventualmente, espirra e tosse, como todos nós. Suponho que seja um príncipe estranho a todas as nobrezas, membro isolado de uma numerosa e pulverizada casta ainda desconhecida.
Abraçado pelo pequeno mundo de pernas, braços, mãos e palavras várias, um menino. Um menino, só.