Depois de décadadas de encantamento com os sóis, o céu, os vôos dos pássaros e outras deliciosas grandezas naturais, arredondei-me em uma leve curvatura cervical e, menos ereta - por isso consciente do desejo e da necessidade da prática da pequeneza -, tornei-me atenta, quase obcecada, ao constante movimento dos meus pés.
Passo após passo, caminhar revelou-se uma atividade potencialmente aflitiva. Já não via as pedras e ignorava os buracos e calçadas íngremes. Não sabia se caminhava sobre o asfalto ou se equilibrava o corpo, subitamente enlevecido, sobre o meio fio. Ganhei atenção nos dedos e uma saborosa ignorância no olhar. Passei a sentir a brisa sobre as unhas e a sujidade acumulada em camadas entre as cutículas crescentes e o esmalte vermelho. Descobri novos saltos reiventando velhas maneiras de impulsionar. Equlibrava todo o peso sobre os calcanhares e já não sentia as pedras pontiagudas que por vezes perfuravam a pele espessada pela fricção contra o tempo.
Durante a exploração dos pés descobri novos modos de tatear, de me sentir sólida e transbordante sobre um mundo contaminado pela aridez. Experimentei a sensação de estar menos pressionada pela atmosfera que muitas vezes oprime; de ser, também, e principalmente, fonte de expiração e de vida úmida, passagem de ar.
Reduzida a um par de pés caminhantes, aprendi coreografias para brincar com as possibilidades oferecidas pelo corpo de que sou parte, pela brevidade do meu corpo. Percebi novos eixos, ignorei retas e restos, passei a me relacionar melhor com os planos que me atravessam.
Dancei as limitações para experimentar novas maneiras de estar em mim.