Sinais do mar
Foi um dos livros que desejei desde o lançamento, mas demorei para adquirir - e ainda vivi com ele essa história bonitinha.
Durante a infância, Ana Maria Machado era uma das minhas escritoras favoritas, uma das que mais levava para a casa quando frequentava as bibliotecas dos colégios em que estudei.
Sinais do mar, o primeiro livro de poemas da autora, foi publicado graças ao incentivo da Ruth Rocha, de quem a Ana Maria Machado é amiga - e que também foi uma das minhas primeiras autoras favoritas.
Li os poemas de Sinais do mar em voz alta, num fim de tarde chuvoso, e senti a poesia reverberando pela casa. Ana Maria Machado construiu areia, ondas, siris, barcos e revoadas com as palavras bem postas que não só remetem a imagens e lembranças mas, como acredito que deve ser em tudo o que é poesia, provocam sensações.
Gostei de ter pisado as praias para as quais sei que posso voltar.
Sinais do mar; Ana Maria Machado - 56 páginas - Cosac Naify
Quantas madrugadas tem a noite
Eu nunca estive em Luanda. Talvez passe a vida toda sem poder dizer que estive em solo angolano e, no entanto, posso dizer que tenho amigos que nasceram e viveram lá.
Quantas madrugadas tem a noite foi meu primeiro encontro com a prosa do Ondjaki, de quem, até então, só conhecia os poemas pelos quais me apaixonei com imensa facilidade.
O livro narra o encontro da estória do AdolfoDido - que, entre uma cerveja e outra, acaba por embriagar-nos entre as palavras sem que saibamos precisar quando e como aconteceu - com muitas outras estórias (ou histórias?) de muitas outras gentes maravilhosamente interesantes.
Em algumas páginas de Quantas madrugadas tem a noite me senti observadora de um universo fantástico que pareceria irreal se a poesia não o tivesse tornado deliciosamente humano. Foi nas passagens em que me senti próxima ao AdolfoDido, que narra os acontecidos e os desacontecimentos, que mais me emocionei. Em alguns momentos me senti como o terceiro elemento, mudo, à mesa, com ouvidos atentos e olhares apurados. Também pude sentir como se AdolfoDido tivesse a minha voz, como se compartilhássemos as dores de desexistir e o deslumbramento ante a beleza encontrada no improvável, porque a sensibilidade permite enxergar além da grandiosidade do óbvio.
Terminei a leitura de Quantas madrugadas tem a noite aos prantos, em lágrimas que misturavam saudade e gratidão.
Não é sempre que nos encontramos em um espelho que parece distante do olhar - porque é dentro.
Quantas madrugadas tem a noite; Ondjaki - 203 páginas - Editorial Caminho
A Autobiografia de Alice B. Toklas
Li A Autobiografia de Alice B. Toklas porque, além de ter gostado muitíssimo de Três Vidas, também escrito pela Gertrude Stein, faz parte da coleção Mulheres Modernistas - que é linda e constantemente ampliada, para desespero e felicidade dos leitores-colecionadores, entre os quais me incluo.
O posfácio, escrito pelo Silviano Santiago, seguido por algumas páginas de sugestões de leitura, me fizeram desejar ler ainda mais do que Gertrude Stein escreveu e também muito do que foi escrito sobre ela.
Fala-se muito sobre o convívio de Gertrude Stein e Alice com os artistas que viviam em Paris, assim como sobre a relação supostamente (?) homossexual que havia entre entre elas. As descrições dos encontros com personalidades como Picasso e de todas as excentricidades daqueles artistas importantes para a época, que frequentavam a casa de Gertrude Stein, são sempre repletas de observações que as tornam ainda mais interessantes. Ainda assim, não considero que as aventuras parisienses sejam o melhor do livro.
A Autobiografia de Alice B. Toklas - que, na verdade, é quase uma autobiografia da Gertrude Stein - retrata um período de guerra, em que Getrude e Alice decidem tornarem-se úteis aos militares, que transportavam entre uma cidade e outra, em um carro dirigido por Gertrude, no qual levavam também notícias, mantimentos e conforto às famílias daqueles que se ausentavam em função dos combates.
A Autobiografia de Alice B. Toklas é também um livro sobre a coragem e as frustrações da escritora, sobre História, arte e estórias de uma Paris que permanece iluminada e luminosa nas páginas que a trazem até nós.
A Autobiografia de Alice B. Toklas; Gertrude Stein - 288 páginas - Cosac Naify
Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo
Fiz a leitura de Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo durante a semana em que revia, em vídeo, alguns dos meus espetáculos favoritos do grupo fundado pelos irmãos Pederneiras.
Foi a primeira vez que estudei teoria e prática simultaneamente e isso serviu para reafirmar a minha convicção de que dançar é utilizar o gesto para expressar o pensamento - por incrível que possa parecer, não são todos os que dançam que pensam assim.
Nem todos os ensaios que compõem o livro foram escritos por pessoas que vivem (d)a dança. Não é o primeiro livro organizado pela Inês Bogéa que reúne textos de autores considerados leigos em dança; a multiplicidade de olhares torna o livro ainda mais interessante, polifônico.
A história do Grupo Corpo, já contada em outros livros, é um exemplo para aqueles que, como eu, vivem (d)a dança. Ler Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo foi uma ótima oportunidade para refletir sobre os caminhos a partir de novos olhares. Talvez tenha sido, como todo livro que considero "de trabalho", mais um daqueles livros que alteram, ainda que minimamente, meu modo de caminhar.
Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo; org. Inês Bogéa - 224 páginas - Cosac Naify
Canções Mexicanas
Em três dias da mesma semana, li e reli Canções Mexicanas, do Gonçalo M. Tavares. Em cada uma das leituras, encontrei um livro diferente. Talvez tenha sido efeito do Mezcal que, sem que soubesse, compartilhei com o narrador.
Em princípio não encontrei nele muitas similaridades com os outros livros escritos pelo Gonçalo M. Tavares. Quem conhece sua escrita sabe que cada frase pode multiplicar-se por uma infinidade de significados e ganhar novas formas a partir de nossas reflexões. Em Canções Mexicanas a multiplicação de significados e as tranformações acontecem de um modo menos explícito, mas acontecem.
Muito do que, em Canções Mexicanas, é descrito como fruto de uma imaginação alterada pelo efeito do álcool, assemelha-se com as vivências assombrosas que compartilhamos. A sociedade e os seres humanos são assustadores - e talvez o Gonçalo M. Tavares de Canções Mexicanas não seja tão diferente assim...
Canções Mexicanas; Gonçalo M. Tavares - 96 páginas - Relógio D'Água
O menino que mordeu Picasso
Não sei exatamente o que esperava de O menino que mordeu Picasso mas, durante a leitura, o livro pareceu menos do que esperei.
A edição é muito bonita, com ilustrações belíssimas e muitas fotografias, mas tive a impressão de que o livro serve mais à memória - ou ao ego - do Antony Penrose que ao prazer de contar uma história.
Talvez O menino que mordeu Picasso sirva como ponto de partida para semear entre as crianças o desejo pelo conhecimento da arte, pela obra de um artista. Talvez o livro cumpra, assim, um dos objetivos da leitura, que é enxergar o outro - ainda que o outro seja apenas um senhor que viveu próximo a um artista considerado brilhante; um senhor a quem, muito provavelmente por conta da pouca idade, o artista não pôde iluminar.
O menino que mordeu Picasso; Antony Penrose - 48 páginas - Cosac Naify
Claraboia
Há alguns livros do Saramago, por quem sou apaixonada, de que gosto menos. Por isso, mesmo tendo adquirido Clarabóia - com acento - assim que foi lançado, esperei alguns meses até encontrá-lo. E que surpresa maravilhosa Saramago nos deixou!
Vendido como "o livro perdido de José Saramago" (porque sensacionalismo vende e, independente dele, Saramago merece ser ainda mais lido), Clarabóia foi escrito quando o autor tinha menos de trinta anos.
Mesmo permeado por estórias de modos de viver que podem ser considerados subversivos, Clarabóia não é um livro explicitamente político, como outros do autor. Embora pareça diferente dos outros livros do Saramado, é possível ouvir, em cada uma das linhas, ecos do autor que, muito tempo depois de Clarabóia ter sido ignorado por uma editora, viria a receber o prêmio Nobel de literatura.
Clarabóia não é um livro sobre cegueira, sobre a morte da morte, sobre o sistema falho ou sobre religião. É um livro sobre a vida. Estórias de pessoas que vivem em um mesmo edifício ou que têm relações com aqueles que vivem ali. Clarabóia é um livro sobre pessoas vivendo. Um livro sobre pessoas através das quais aprendemos o outro, que só existirá, de fato, se nos dispusermos a observar.
Claraboia; José Saramago - 384 páginas - Companhia das Letras