27 de jan. de 2013

Deslugares

1.

Como eu, ele tinha poucos amigos e não era dotado de grandes habilidades sociais ou esportivas. Introvertidos, partilhávamos em silêncio o amor pelos livros e criávamos nossas histórias. Eu gostava de escrever e ele desenhava muito bem. O Rafael era o companheiro ideal para o isolamento na biblioteca. Naquela manhã nublada, pousei meus cadernos sobre a cadeira que era dele.
Tínhamos oito anos e, na última vez em que vi o Rafael, ele carregava entre os dedos a fita de cetim amarelo com uma medalha prateada, que ganhou no catecismo. Vestiram-no com a calça azul-marinho e a camisa branca que usava para ir à missa. Um anjo, diziam os religiosos. Eu já não acreditava em deus.
O Rafael não era como as outras crianças rosadas, mas parecia ainda mais pálido no cemitério, acomodado entre as paredes brancas do caixão.

24 de jan. de 2013

Amor

Se não chorei, não foi porque sou forte, nem porque sou insensível, mas porque conheço. Porque revi na tela boa parte do que sei. Também porque sinto, eu sei. A dor perpassa os dias e ecoa corpo adentro: compadeço porque não [me] curo.
É tanto amor que a gente desespera e animaliza. Tanto amor que a gente [se] acaba antes porque não suporta o sofrimento que conduz ao fim.
Você fez mais um belo filme, Michael Haneke.

16 de jan. de 2013

Colheita bendita

Tudo posso, desde que minhas atitudes reverberem minhas crenças e (à) vontades, desde que cada um dos meu gestos seja uma extensão da minha presença.
Acredito no amor e continuarei a semeá-lo, a despeito de todos os pesares. Existem terrenos férteis e possibilidades imensas.
Semearei amor ainda que a baixa vileza humana se apresente cada vez mais próxima. Semearei amor mesmo que a crueldade se manifeste consanguínea. Semearei amor porque tenho me alimentado dos amores que nutrem a minha lucidez. Porque amar liberta. Porque o amor destrói e movimenta. O amor cria.
Semearei amor porque o amor vive em mim.