31 de jul. de 2013


o assombro provocado
pelo pulsar das paredes
que, desabadas, ainda vivas
permanecem
entre mim e o outro

reparado
sob a falência dos corpos
e o desespero dos nossos
entulhos desinspirados,
um sopro


30 de jul. de 2013

: derrelição

há pessoas que dizem fazer o que não fazem. que assinam o que não escrevem. pessoas quebrando promessas vazias e as caras umas das outras. há pessoas quebrando a cara. pessoas imundas e nocivamente vaidosas. pessoas imersas num oceano de mentiras. há mentiras terríveis, faltas graves. muitos caminhos áridos para as mãos. não temos a força das raízes e nem a grandeza das copas das menores árvores. respiramos mal em um mundo indigesto. um mundo de crueldade em que só os piores podem triunfar.

29 de jul. de 2013

"Se podes olhar, vê."



Descansa sob o peso de si e sonha,
apesar de todos os pesares.



Feira livre, em Rio de Contas - Chapada Diamantina - Bahia
Fotografia de Cléria Vanusa

28 de jul. de 2013

Dois livros: Afonso Cruz


Os comentários feitos pela Inês, que compartilha suas experiências de leitura e bom gosto literário no blogue OMG! She's a book reviewer!, e o ótimo título do livro Jesus Cristo Bebia Cerveja, despertaram em mim o desejo de conhecer este e outros livros escritos pelo Afonso Cruz.
Depois de muitas dúvidas, porque todos os livros do autor têm títulos e premissas atraentes, escolhi três livros para começar a aproximação -  infelizmente não é possível ler ou ter toda a bibliografia de uma só vez ou imergir nas obras de todos os autores que parecem interessantes.
A Boneca de Kokoschka será lido em agosto, mas os outros dois foram lentamente devorados e antropofagicamente se transformaram em parte do eu.


O Livro do Ano, que é um livro lindo, lindo, lindo (sim, três vezes lindo), foi escrito e ilustrado pelo autor. E, embora seja preto, com algumas páginas negras e capa dura, é um livro feito de luz, porque é leve. Nele, Afonso Cruz escreveu e desenhou a vida de uma menina perguntadeira, que volta os olhos curiosos para as relações humanas e para o mundo; que nos descreve, com breves frases poéticas, situações cotidianas e indagações.
O Livro do Ano é um daqueles livros que embonitam a estante, que são bons presentes para os que amamos e que, durante a leitura e as releituras, fazem ecoarem as dúvidas e acalantam o coração.


O Livro do Ano - Afonso Cruz - 144 páginas - Alfaguara Portugal





Durante a leitura das primeiras páginas de Jesus Cristo Bebia Cerveja percebi que tinha nas mãos um bom livro e senti que faria meus todos os elogios escritos pela Inês, mas estava enganada. O livro, que conta, entre outras histórias, a história de uma garota que vive com a avó adoecida que deseja conhecer a Terra Santa, é muito melhor do que eu ousaria imaginar.
Um dos personagens do livro me fez lembrar muito do Settembrini, de A Montanha Mágica, do Thomas Mann - que é um dos meus livros favoritos na vida - porque discursa em um tom semelhante e parece desejar ocupar um espaço parecido na trama. Não costumo me afeiçoar a personagens e, ainda que Settembrini seja um dos poucos pelos quais nutro afeto profundo, quase apego, não me senti inclinada a gostar mais de um personagem que dos outros porque muitos deles são igualmente surpreendentes, como são surpreendentes os caminhos e destinos das histórias contadas pelo autor.
Me senti angustiada, à beira das lágrimas, muitas vezes, durante a leitura; mas precisei conter o escândalo das gargalhadas três linhas depois. A criatividade do Afonso Cruz desconhece limites. Por isso, nas últimas páginas, já parecia natural encontrar palavras sobre religião, sobre a tristeza da morte e da decrepitude, sobre a nossa condição de abandono e um sermão sobre a importância das minhocas ou um avião de striptease, no mesmo livro.
Quando entrevistado, Afonso Cruz costuma responder sobre as muitas viagens que fez pelo mundo. Talvez a melhor das viagens aconteça no universo prodigioso que ele carrega consigo, e que, generosamente, transforma em livros que dão origem a outros mundos em nós.


Jesus Cristo Bebia Cerveja - Afonso Cruz - 248 páginas - Alfaguara Portugal


26 de jul. de 2013

Sublinhamentos


Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são "meu" e "minha", que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa, apenas um deles diria "meu". E aquele que diz "meu" para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para quê isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.

Excerto de Kholstomér - A história de um cavalo, no livro O diabo e outras histórias, do Liev Tolstói

24 de jul. de 2013

(In)capacidades

Sou capaz de compreender os que têm fé e os que cultuam os próprios demônios. Compreendo que quase todos os que alimentam demônios acreditem que os tormentos sejam produzidos pelo entorno, sempre no exterior de si. Compreendo até mesmo as pessoas que fazem da ostentação uma cultura e do acúmulo de posses a única possibilidade. Procuro ser compreensiva com aqueles que preferem o entretenimento em detrimento da arte. Sou capaz de compreender os que preferem se abster de arte, sobretudo os que têm bons argumentos para justificar tal abstenção - porque são, inconscientemente, artistas. Mas não há nada no mundo que me torne capaz de compreender a imobilidade mantida diante do sofrimento alheio; não consigo sequer imaginar qual é a parte da matéria humana que, endurecida, transforma pessoas em seres incapazes de manifestar compaixão.
Entristecida, lamento por aquele que, ainda que não perceba - porque nunca percebe -, se sentiu diminuído. Lamento ainda mais por quem, tendo em si todos os sentidos, tornou-se portador de uma sensibilidade débil, incapaz do gesto e cego pela frieza do olhar.

21 de jul. de 2013

Amor em texto, amor em contexto


"Ouvir o outro é uma forma de amor. O sujeito amoroso é alguém que está disponível, que se abre para o outro..."

A Ana Maria Machado foi uma das primeiras autoras favoritas, ainda na infância, e o Moacyr Scliar, de quem ainda não conheço a obra ficcional, sempre me pareceu um bom escritor e um homem digno de admiração e respeito. Gosto muito de livros de cartas e de conversas entre autores porque me interesso pelas pessoas que escrevem livros e porque acredito que uma das principais qualidades dos livros é nos tornar mais humanos, para que possamos suportar e compreender a convivência com os outros humanos a ponto de desejarmos a riqueza de estar entre os que são diferentes de nós.

"É na conversa que o amor se sustenta, não é!?


Durante a leitura de Amor em texto, amor em contexto, que é a transcrição de uma conversa entre os dois escritores, senti como se estivesse próxima das vozes que falavam sobre o amor, sentada à mesma mesa ou dividindo o sofá de uma das salas da Academia Brasileira de Letras. O diálogo, em que ambos começam dissertando sobre o amor e sobre o amor na literatura de forma generalizada, definindo os conceitos filosóficos e históricos do amor e do amor retratado pela literatura, não segue um padrão linear, por isso é transmitido ao leitor com uma forma deliciosamente real.

"Só os homens podiam ler e escrever, pois o texto, como instrumento de poder que é, tinha de estar na mão dos homens."


Gostei especialmente de perceber como ambos foram capazes de, em poucas páginas e palavras, dizerem muito de si e da própria história - de modo que é claro que o diálogo aconteceu entre a Ana Maria Machado feminista e o médico Moacyr Scliar - e que, embora sejam duas pessoas com histórias e formações diferentes, tenham sido capazes de produzir um diálogo frutificante, que vai de Sócrates aos relacionamentos virtuais, passando por temas como religião e psicanálise, porque ambos conduziram as palavras e raciocínios para a mesma direção.

": é mais fácil ser sectário do que ser compreensivo."
...
"O raciocínio por detrás da tolerância é mais complexo."


Li Amor em texto, amor em contexto em uma tarde; mas ainda o estou digerindo, refletindo e pesquisando sobre o que li e desconheço. É um livro leve, simples, de fácil leitura, ótimo para um domingo bonito. Mas é também um dos livros que carregarei pela vida porque, ao despertar o que já existia e trazer novos desejos e saberes a quem sou e desejo me tornar, ele está em mim.


Amor em texto, amor em contexto: Um diálogo entre escritores - Ana Maria Machado / Moacyr Scliar - 112 páginas - Editora Papirus 7 Mares

20 de jul. de 2013

Sublinhamento

O poeta, à medida que avança, apaga os rastos que foi deixando, cria atrás de si, entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais coincidirá, jamais se justaporá à do poeta, única e finalmente indevassável.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote - Diário II

19 de jul. de 2013

Trois


I. O corpo que dança pode pulsar além do coração.

II. Diferentes instrumentos afinados pela poesia: um grupo de dança.

III. A coreografia em que cada movimento seja um cair em si.

17 de jul. de 2013

Quinta-feira, Abril 02, 2009

A dor que não doía nos ossos, músculos ou pele; a dor que excedia a carne amanheceu desperta pela atípica luz quase fria do verão: realidade. Tortuosa estrada de rumos incertos e sem retorno, margeada por sombrios bosques de abandono e pelo podre oceano além-abismo do desespero. Consciente, dissolve-se no absurdo a que se acorrenta. Contando inúmeros e resistentes elos inquebráveis, mergulha no profundo azul insípido, frágil e sem beleza. Aperta com força cacos pontiagudos entre as mãos. Se esvai carmim com a brisa pouca, quase ridícula. Brilho líquido, entorna o cálice. Olhos cerrados, exige de volta a ignorância. Desconhece. Tateia a brasa que logo cede flamejante. Em chamas, deseja o nada - quer agora a confortável escuridão.

15 de jul. de 2013

Dia do Homem

Hoje li muitas páginas de um romance da Virginia W., no qual a leitura parecia ter empacado, e terminei de ler um livro de poemas da Marina Colasanti, que escreve lindamente e eu só conhecia de um texto na oficina do Becê. Li muitas páginas de palavras bonitas muito bem postas em histórias bem escritas. Ainda assim, confesso que foram os textos que li no fundo do poço de lama que são as redes sociais que me fizeram sentir vontade chorar. De desgosto.
Não consigo acreditar que o dia do homem seja levado a sério por eles!
Li textos ridiculamente pobres, escritos por homens que têm entre vinte e trinta e poucos anos, repetindo o discurso do patriarcado, sobre os homens serem os protetores, os provedores, os guardiões... e serem, segundo as palavras deles, tudo que uma mulher quer. Sim, eles parecem acreditar que um homem é tudo que uma mulher quer. É desnecessário mencionar que há mulheres que, mais que a um homem, desejam outras mulheres. Não é o meu caso, mas, por acaso, tudo o que eu queria hoje, especialmente hoje, era um par de botas azuis com fivelas e spikes dourados. Não são botas para uma heroína e nem foram trazidas por um herói salvador de mocinhas frágeis e incapazes - eu, como muitas outras mulheres, não espero que meus desejos de consumo sejam atendidos por alguém do sexo oposto. São botas azuis nas quais eu investi o dinheiro que é fruto do meu trabalho. São botas azuis que eu desejei e que foram compradas por mim.
Botas à parte, li também que alguns rapazes se sentiram ofendidos com a pouca sensibilidade das mulheres a um dia tão importante. Alguns deles, dois ou três, mencionaram que a data deveria ser tão comemorada quanto o dia da mulher. O que eles esperavam? Uma cerveja? Uma mesa com bolo e outros doces? Uma medalha ou um certificado de melhor macho do mundo? Se queriam o apoio das mulheres machistas - para vergonha de muitas de nós -, eles conseguiram. Muitas gostaram das declarações feitas pelos candidatos a príncipe encantado. Pelo alto nível de desinformação, todos os envolvidos estão de parabéns.
Eu não celebro o dia da mulher e não espero receber, nesta ou em outra data, um prêmio de consolação por sobreviver calada sob o manto do machismo, porque não me calo e não me submeto a ele. Mas espero, sinceramente, que aqueles que se sentem ofendidos com a irrelevância do dia do homem saibam fazer bom uso das ferramentas de pesquisa para descobrir quais foram os acontecimentos que, em 1917, registraram a importância histórica do dia 8 de abril. Sugiro que procurem informações sobre o dia 25 de março de 1911 ou sobre a história das mulheres que tiveram suas vidas ceifadas por uma sociedade dominada por pessoas tão pouco esclarecidas quanto vocês.
Posto isto, conversaremos no ano que vem.
Não sei se minhas botas azuis resistirão até 2014, mas estou certa de que continuarei dispensando as rosas e os chocolates no oitavo dia de abril.
Prefiro lírios brancos sem data marcada, todos os dias e sempre.

13 de jul. de 2013

Sublinhamento

:através da assobiada maneira de existir, ele permitia que alguma tristeza se esvaísse, deixando o espaço rigorosamente necessário para a próxima dose de tristeza. Através do que era belo para os outros, a solidão fazia-se circular nele, permitindo que se não sufocasse, mas impedindo-o de conhecer a paz.
O Assobiador sonhou que a intensidade bélica do seu assobio encantava o mundo porque ele era nem mais nem menos do que o distribuidor enganoso e exclusivo que a tristeza arranjara para mostrar à Humanidade apenas a sua face bela.


Ondjaki, no livro O Assobiador.

11 de jul. de 2013

Dez bons conselhos de meu pai


Só muito recentemente, depois de muitos livros e amor pelo escritor, conheci os livros que o João Ubaldo Ribeiro "escreveu para crianças" - uso aspas porque estou entre as pessoas que não costumam classificar boa literatura segundo a faixa etária dos leitores para os quais supostamente se destinam os livros.
Hoje comecei o dia muito bem impressionada com a leitura de mais um livro do autor de Viva o Povo Brasileiro, que considero um dos grandes livros da minha vida. Dez bons conselhos de meu pai é, como mostra a imagem acima, um livro bonito. Dos livros bonitos todo mundo gosta, os livros bonitos todo mundo quer. E se o conteúdo dos livros bonitos for interessante, o passeio através das palavras será ainda mais prazeroso.
As notas das orelhas e da quarta capa contam um pouco sobre a infância do autor, sobre a vida do pai, Manuel Ribeiro, e sobre a relação entre eles, que foi marcada pela valorização da cultura e pela presença dos livros. As sentenças que determinam os dez bons conselhos enumerados começam todas com um enorme não: não seja burro, não seja amargo, não seja ignorante... mas a todas elas sobrevêm grandes sins feitos de pequenas frases que encorajam o aprendizado, a boa auto-estima, a auto-suficiência e a felicidade cultivada a partir do constante questionamento das nossas atitudes e dos gestos daqueles que nos rodeiam.
Sinto vontade de transcrever integralmente o texto do livro, porque ele merece ser lido. Não devo fazê-lo porque talvez a experiência seja empobrecida sem as ilustrações feitas pela Bruna Assis Brasil. E também porque, apesar de João Ubaldo supor que seu pai "não se incomodaria por eu passá-los (os conselhos) adiante, pois ele também tinha muita consciência política", penso que quem comercializa o livro - que merece todas as boas vendas - talvez não pense assim.


Dez bons conselhos de meu pai - João Ubaldo Ribeiro - 56 páginas - Editora Objetiva

10 de jul. de 2013

...


A liberdade de, sendo devota da beleza, não ter compromisso com a perfeição.

9 de jul. de 2013

Libertem a Mulher Forte


Conheci a escrita da Clarissa Pinkola Estés através do seu livro mais famoso, Mulheres que correm com os lobos, que procurei porque alguém disse que é um livro que todas as mulheres interessantes leram ou deveriam ler. Concordo e acrescento que todas as pessoas - e não só mulheres - interessadas pelo conhecimento de si e do outro, e por isso interessantes, deveriam imergir no conteúdo daquelas muitas páginas capazes de transformar o olhar.
Entre o primeiro contato com a escrita da psicanalista, há anos, e o reencontro, a partir da publicação mais recente, passei por todos os outros livros escritos pela autora e recorri aos textos de alguns deles quando escrevi o artigo Mulheres que Desaparecem, que assino com a Maira Begalli e a Flávia Cremonesi.
Para quem não conhece os outros livros escritos pela Clarissa Pinkola Estés, Libertem a Mulher Forte pode parecer, à primeira vista (e à segunda, terceira e quarta), excessivamente religioso; no sentido ruim comumente atribuído ao adjetivo.
A autora utiliza a figura da mãe como representante da força que vive em nós e é manifestada a partir de nós; que, para aqueles que crêem, é a mãe que está também acima de nós.
Como pretendemos que façam todos os bons livros, Libertem a Mulher Forte questiona e perturba, mas pode ser também consolador. Gosto quando a leitura possibilita que a compreensão aconteça sob diferentes pontos de vista, por isso sinto que a leitura de Libertem a Mulher Forte me atingiu de maneira muito particular. Estive na livraria e vi o livro vendido como sendo de religião/cristianismo, mas não foi esse o registro feito pela editora na ficha catalográfica e nem o que encontrei durante a leitura.
Para mim, que sou atéia, o livro trata de um arquétipo - não de um ícone, como pode parecer para outros que o leiam - e fica muito mais interessante quando a autora relata suas experiências como educadora, entre outras bonitas e emocionantes vivências pessoais que aconteceram no decorrer dos anos em que ela percorreu lugares difíceis das almas e dos traumas de muitas mulheres e comunidades.
Depois de anos sem publicar livros inéditos, Clarissa Pinkola Estés continua excelente e tem muito para nos contar.


Libertem a Mulher Forte: O amor da mãe abençoada pela alma selvagem - Clarissa Pinkola Estés - 408 páginas - Rocco

8 de jul. de 2013

incinerados

é sempre mais difícil do que parece, e eles, porque não sabem, não têm culpa. não alimentaram o ódio porque estavam privados da plenitude das capacidades mentais. donos de afetos inconsistentes, imergiram no inverno que alimenta o vazio e, movidos pelo medo do ressentimento, que não é deles porque me pertence, refocilaram no tempo presente. o passado pertence à melancolia que a longa distância acentua, não é lugar para entregar os corpos à diversão. a vida transporta e transfere o peso que nos reúne no entorno da fogueira em que somos queimados. talvez sejamos condenados pelos momentos em que não soubemos entrelaçar nossos dedos aos dedos de outras mãos. e nós nunca soubemos. não sabemos. eu também não sei o que eles não sabem. eles não têm culpa e eu também não.

7 de jul. de 2013

es.bór.ni:a sf.

esbórnia é palavra que enche a boca, amacia o por dentro das bochechas, sensibiliza os lábios e foi feita para ser gritada na plenitude dos lobos de ambos os pulmões: esbórnia! para rasgar o verbo e transgredir todos os versos que deságuam no topo inútil da cabeça racionalizante, para entorpecer a linha reta que vacila e também para desorganizar a imensa repressão explicitada. saboreio os sons da esbórnia para desatravancar caminhos e destravar todas as fechaduras. para ter mais força, arrombar portas, conquistar a delicadeza das janelas e romper a aparente solidez de que é feito o chão. grito esbórnia para sair de dentro, para dar a conhecer o meu esquerdo, que vive e respira do lado de lá.

6 de jul. de 2013

Dos amores silentes

Creio que deveríamos, por vezes, abandonar os autores que consideramos nossos e deixar os livros escritos por eles misturados a outras histórias, de modo que as idéias vindas através da música das palavras sejam postas em movimento e, no transbordamento das páginas, tornem-se parte das nossas ações. Despertar do sono um autor muito querido é mais que ressuscitar parte da memória ou colocar-se em permanente estado de encanto - e, embora menos festivo aos olhos dos outros, é mais surpreendente que qualquer efeito de mágica, porque é real. Conhecer novas palavras vindas dos que escreveram nossos livros favoritos é resgatar parte da beleza que atravessa nossas vidas e desejar novas boas vindas àquilo que nos constitui. Reencontrar as palavras de um autor amado é renovar os votos eternos que nos comprometem com o amor próprio. É um modo de, retornando ao vocabulário e às formas admiradas, recuperarmos e trazermos à luz a melhor parte de nós.

5 de jul. de 2013

Sublinhamento

Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão...

No livro Angústia, do Graciliano Ramos da Tati.

3 de jul. de 2013

Inúteis

A Metamorfose

Sim, Gregor Samsa, somos nada. Depois de nos julgarmos o ponto central, o eixo sobre o qual circunda o universo infinito e o além, somos nada. Somos menos que o pó. Para os desesperados, preguiçosos, vagabundos e parasitas, somos nada. E só nos percebemos desnecessários quando, tarde demais, vimos suas costas. Já longe. A uma distância inalcançável. Tarde demais.
No princípio da transformação, o assombro, o asco, o desamor e a ignorância. O medo da diferença. O pavor e a discriminação. Nojo daquilo que é familiar. Nojo do que, por semelhança e identificação interna, torna repugnante o que foi belo. Desamor, Gregor Samsa. Indiferença.
Descobrimo-nos não o centro, a base ou o botão de liga-e-desliga. Não somos o suporte ou sequer a consciência. Somos nada. Terminamos sozinhos, Gregor.
Juntaram nossos restos mortais e deles se livraram. As peças restantes se sobrepõem. Sem nós, a engrenagem continua a funcionar.


Escrito por mim e originalmente publicado no falecido blogue Rango na Madrugada, no dia 03 de outubro de 2007.

2 de jul. de 2013

muito pouco

tem muita gente achando que é muito, com muito tudo, cega da imensidão do outro. tem muito circo, muitas caras e posses, muito farelo se pensando pão. tem muita alegria estampada nos sacos vazios de felicidade. muita angústia calada e pouca simplicidade. tem pouca respiração e suspiro. tem muito vento de nada para pouco ar. tem muito pouco olhar para fora. muito pouco amor no mar de mágoas. temos muito pouco tempo. muito poucos encontros. temos ainda muitos caminhos e muito poucos companheiros durante o caminhar.

1 de jul. de 2013

...

Suponho que hoje seja uma segunda-feira ensolarada em todo o país-continente verde, amarelo, branco e azul anil. Imagino que todos tenham ido sentados para o trabalho, pelo qual são muitíssimo bem remunerados, utilizando o excelente sistema de transporte público com o qual podemos contar. Suponho que os filhos daqueles que têm filhos tenham passado o dia em ótimas escolas públicas e que as crianças e os adolescentes, ao final do período, estarão satisfeitos com as experiências vivenciadas. Suponho que as famílias se reunirão à farta mesa do jantar para compartilhar os acontecimentos do dia. Imagino que, durante a noite, todos dormirão tranquilos durante oito horas ou mais. Suponho também que os brasileiros tenham suas contas bancárias com saldo positivo - ainda que nelas não esteja o salário do mês recém-começado - e que ótimos hospitais repletos de bons médicos continuem à espera de bem assistir gratuitamente os poucos que deles precisem.
Sobre a minha casa chove há dias. Aqui não há ganhadores de títulos mundiais.